sábado, 19 de julho de 2008

Pintando com novas cores: um esboço de leitura em "Las Meninas"

A Escola de Velázques- George Deeam


Autora: Profa Dra Ormezinda Maria Ribeiro- Aya

Resumo:
Os textos sincréticos compõem um vasto acervo utilizado pela mídia e adquirem cada vez mais relevo. Neste ensaio pretendemos fazer uma leitura do texto de Elio Gaspari para a Folha de São Paulo, que se utilizou de uma montagem de Alex de Freitas da obra de Velázquez, ''Las Meninas''. Nosso propósito é trazer à tona a questão da eficácia simbólica, destacada por Pêcheux (1985), como um operador de memória social, que possibilita a reconstituição de figuras do passado, trazendo-as para uma leitura atualizada, posto que tem o poder de retomar discursos que estão em outros lugares e em outras épocas e podem ser evocadas em forma de paráfrases. Interessa-nos dar a essas remissões de discursos um cunho pedagógico para atingir nosso leitor: aquele aluno que, exposto à mídia, cada vez mais faz uso de variados tipos de textos, sem se limitar ao texto escrito, mas freqüenta uma escola ainda tradicional.

Palavras-chave: textos sincréticos; memória social; leitura



Estes escritos encadeados podem ser lidos como uma seqüência de pequenos poemas ou como um poema longo que passo a passo desdobra uma idéia única: a de que eu não sou, a não ser quando o outro me faz.

(Carlos Rodrigues Brandão)

De acordo com Marcuschi (1986), em todas as sociedades letradas, os que têm acesso à escrita podem desenvolver quatro habilidades no uso da língua: falar e escrever, ouvir e ler.
Ora, sabe-se que a leitura implica, ao mesmo tempo, a competência formal e política e que, nesse quadro, também representa a realização da autonomia do sujeito que encontra na leitura não apenas a maneira erudita de ver ou de realizar o armazenamento passivo das informações, mas também a demonstração concreta de que é possível saber pensar para compreender e para melhor intervir. E para que a leitura se frutifique na devida competência e na devida cidadania precisa da formulação pessoal, da produção de um outro texto: o texto do próprio leitor, pois em certo sentido, como diz Austin (1990), “dizer é fazer”.
O objetivo final de um ensino de língua proficiente deveria ser, portanto, formar um leitor crítico capaz de ler o implícito do texto, refletir sobre o pensamento do autor sobre as estratégias utilizadas por ele para mascarar seu ponto de vista.
A urgência de se associar a leitura à construção de sentido é ponto básico das diversas pesquisas que realmente objetivam trabalhar o letramento como forma global de aprendizado. A mudança de atitude do professor tanto na identificação do processo como no desenvolvimento de uma leitura de construção de sentido é, ao nosso ver, o ponto de partida para um trabalho eficiente e, realmente, significativo se objetiva tornar o educando um leitor proficiente. A prática deve, ainda levar o aluno ao uso competente da escrita que passa, de forma obrigatória, pelos processos de leitura. A preocupação em formar alunos leitores constitui hoje o eixo norteador das transformações educacionais que compõem a grande demanda social atual.
O processo de significação do texto é instaurado a partir da instituição do sujeito do discurso, que se constitui, ao mesmo tempo, como interlocutor, o OUTRO, que é por sua vez constituído do próprio EU; e nesse encontro, ao se identificarem como interlocutores (eu–outro), promovem a atualização do discurso.
A análise do discurso visa salientar o funcionamento da compreensão na constituição dos processos de significação, como nos esclarece Orlandi (1988, p.74):

O sujeito leitor que se relaciona criticamente com sua posição, que a problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura, compreende. A compreensão supõe uma relação com a cultura, com a história, com o social e com a linguagem, que é atravessada pela reflexão e pela crítica.

Gregolin (1999, p. 57) afirma que a escola, ao organizar seu conhecimento a partir da escrita, centraliza-se em atividades utilitárias privilegiando o material escrito e impede que os leitores se apercebam da complexidade que há na relação entre a linguagem verbal e a não verbal. Esclarece, ainda, essa autora, que os textos sincréticos, atualmente, compõem um vasto acervo utilizado pela mídia e adquirem cada vez mais relevo, lembrando que a memória social não se encontra somente guardada nos materiais escritos, mas também se apresenta, nas formas da mídia, diante do icônico, do simbólico.
Com base nesse aspecto é que pretendemos fazer uma leitura do texto de Elio Gaspari para a Folha de São Paulo, do dia 23 de julho de 2000, intitulado: ''As assessorias podem explodir'', utilizando-se de uma montagem feita por Alex de Freitas da obra de Velázquez, ''Las Meninas''.
Nosso propósito é trazer à tona a questão da eficácia simbólica, destacada por Pêcheux (1985), como um operador de memória social, que possibilita a reconstituição de figuras do passado, trazendo-as para uma leitura atualizada, posto que tem o poder de retomar discursos que estão em outros lugares e em outras épocas e podem ser evocadas em forma de paráfrases. O que nos interessa, mais precisamente, é dar a essas remissões de discursos um cunho pedagógico, com vistas a atingir o nosso leitor: aquele aluno que, embora participante da vida moderna, exposto à mídia, que cada vez mais faz uso dos mais variados tipos de textos, sem se limitar ao texto escrito, freqüenta uma escola, ainda tradicional, no sentido, explicitado por Gregolin.
Para tal, apropriaremo-nos dos comentários tecidos por Foucault (1985) em ''Las Meninas", esforçando-nos para compor um texto a partir de ''alguns fragmentos encadeados que vão do eu ao outro”, seguindo a trilha de Brandão, (1988).
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A Cena Original


Las Meninas- Velasquez

A Outra Cena

Em que tempo eu sou:
Aqui? Agora?
Fui em algum tempo
O que não sou mais?
Serei em um outro tempo
O que não sou agora?
Porque a cada instante
Sou eu mesmo: sou!
E sou um outro que veio antes
E me antecedeu: em quem eu penso.
De quem me lembro
Em quem me sinto: sou eu?
Porque a cada instante
Sou eu mesmo: sou
E sou um outro
Que me sucederá:
Em quem me penso
Por quem eu lembro
Em quem me pré-sinto
Estarei lá?

Sendo um só: eu
Ou sendo dois em um: eu e me,
Sou três no tempo em que vou:
Quem sou, quem fui, que serei.

(Carlos Rodrigues Brandão)


A FUSÃO DE IMAGENS

Ah! Outro:
esse difícil,
este lado de mim
que não sou eu.
Como olhar-te, outro
e te querer
neste rosto que eu sou,
e não é meu?
Carlos Rodrigues Brandão

A Análise do Discurso de linha francesa reconhece que o sentido é constituído pela interação entre os interlocutores, que por sua vez estão inseridos em um contexto histórico e não pretende, conforme ressalta Pêcheux (1999b, p.14), instituir-se em especialista da interpretação, dominando ''o'' sentido dos textos, mas propõe-se a construir procedimentos que exponham o olhar do leitor a vislumbrar o interdiscurso. Nesse prisma Orlandi (1999, p. 17 e 21), lembra que:

sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, na articulação da língua com a história, em que entram o imaginário e a ideologia.
(...) A ordem da língua e a da história, em sua articulação e funcionamento, constituem a ordem do discurso.


Assim, reportaremo-nos à descrição da obra de Velázquez, ''Las Meninas, segundo Foucault, ressaltando o que afirma Gregolin (1999, p.57):

O poder da imagem é o de possibilitar o retorno de temas e figuras do passado, colocá-los insistentemente na atualidade, provocar sua emergência na memória presente. A imagem traz discursos que estão em outros lugares e que voltam sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrases. Por estarem sujeitas aos diálogos interdiscursivos, elas não são transparentemente legíveis, são atravessadas por falas que vêm de seu exterior- a sua colocação em discurso vem clivada de pegadas de outros discursos.

Da análise de Foucault (1985), para transportá-la para a análise atualizada de Elio Gaspari, no caderno Brasil de 23/07/00, tomaremos alguns recortes que consideramos pertinentes, sob o nosso ponto de vista, o que nos coloca também como participante da cena, ou como um outro eu nessa teia discursiva.

Recorte 1

''O pintor está ligeiramente afastado do quadro. Lança um olhar em direção ao modelo; talvez se trate de acrescentar um último toque, mas é possível também que o primeiro traço não tenha ainda sido aplicado''

Recorte 2

(...)
O pintor, em contrapartida, é perfeitamente visível em toda a sua estatura; de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez irá absorvê-lo logo em seguida... ''

Recorte 3

(...)
Podemos vê-lo agora, num instante de pausa, no centro neutro dessa oscilação. Seu talhe escuro, seu rosto claro são meio-termos entre o visível e o invisível: saindo dessa tela que nos escapa, ele emerge aos nossos olhos; mas quando, dentro em pouco, der um passo para a direita, furtando-se aos nossos olhares, achar-se á colocado bem em face da tela que está pintando; entrará nessa região onde seu quadro, negligenciado por um instante, se lhe vai tornar de novo visível, sem sombra nem reticência. Como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto do quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a representar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis.''

Recorte 4

(...)
''Fixa um ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo, nosso rosto, nossos olhos.''

Recorte 5


(...)
Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não poderíamos evitar: ela atravessa o quadro real a alcança, à frente da sua superfície, o lugar de onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge infalivelmente e nos liga à representação do quadro.''

Recorte 6


(...)
''O pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos encontramos no lugar do seu motivo. Nós espectadores estamos em excesso. Acolhidos sob esse olhar, somos por ele expulsos, substituídos por aquilo que desde sempre se encontrava lá, antes de nós: o próprio modelo. Mas, inversamente, o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam;''

Recorte 7

(...)
''A despeito de seu distanciamento, a despeito da sombra que o envolve. Mas não é um quadro: é um espelho. Ele oferece enfim esse encantamento do duplo, que tanto as pinturas afastadas quanto a luz do primeiro plano com a tela irônica recusavam.''

Recorte 8

(...)
''poder-se-ia esperar que um mesmo ateliê, um mesmo pintor, uma mesma tela nele se dispusessem segundo um espaço idêntico; poderia ser o duplo perfeito.''

Recorte 9
(...)
''Estranha maneira de aplicar ao pé da letra, mas invertendo-o, o conselho que o velho Pachero dera, ao que parece, ao seu aluno, quando trabalhava no ateliê de Sevilha: 'A imagem deve sair da moldura'.''


Recorte 10

(...)
''É preciso, pois fingir não saber que se refletirá no fundo do espelho e interrogar esse reflexo ao nível de sua existência.

Recorte 11

(...)
"Tal reflexo mostra ingenuamente, e na sombra, aquilo que todos olham no primeiro plano. Restitui, como que por encanto, o que falta a cada olhar: ao do pintor, o modelo que é recopiado no quadro pelo seu duplo representado; "


UM OUTRO QUADRO


"Estranho:
qualquer pessoa pode me ver
nas minhas costas
muito melhor do que eu mesmo.''

(Carlos Rodrigues Brandão)
Não gostaríamos de apresentar uma análise de leitura ou nossa leitura pessoal desses recortes, todavia nosso objetivo é criar uma nova moldura para o mesmo quadro: nossa proposta é deixar que o leitor coloque as cores que lhe aprazem. Da mesma forma que o articulista da Folha trouxe do Barroco espanhol uma nova perspectiva, interessa-nos suscitar essa possibilidade para novos leitores. Empregando uma metáfora: a leitura é um quadro que não pode ser pintado da mesma forma duas vezes, nem mesmo pelo seu autor, pois as cores da paleta jamais serão as mesmas, porque o tempo, a luz, a mistura interferem no resultado final. De igual modo, quem contempla sempre vê algo que o outro não viu. Como disse Merleau-Ponty: ''o olho que vê o mundo é o mundo que o olho vê''.
Segundo afirma Orlandi (1999) o sujeito só adquire a sua completude, quando se coloca em relação ao outro, quando busca sentido na interação, no espaço discursivo e na interpretação.
Entendendo a história como elemento fundamental para a identidade do sujeito, o discurso não se funda nas palavras ou na superfície textual, mas no espaço de troca entre vários discursos, conforme aponta Maingueneau (1984, p.11). Assim, assumindo o que diz Pêcheux & Fuchs (1975), entendemos que o sujeito tem a ilusão de que diz algo, que é a fonte do sentido, todavia, o sentido se constrói na rede discursiva com outros textos. O sujeito que enuncia algo se insere na cadeia de outros que já disseram antes dele.
Para Pêcheux (1975) o discurso é um acontecimento, que se faz novo a cada instante. O sentido velho é retomado e o novo há que ter algo a repetir suscitando a memória discursiva lançada na repetição que a cada enunciação se faz nova.
Assim, ao retomarmos, primeiro a imagem de Velázquez, sob a ótica de Foucault, em seguida sob a atualização de Gaspari, somada aos nossos recortes tanto do texto de Foucault, quanto do poema de Brandão, assumimos uma nova leitura do já dito, respaldados em Gregolin (1999, p. 46) que, revisita a história a partir do olhar da mídia impressa e, sob outro enfoque, buscamos captar a história do ''presente'', contraponto textos temas de momentos históricos diversos, entendendo que essa imagem é apenas um recorte da realidade na medida em que tira uma porção de realidade de seu contexto original e transfere a mesma imagem para outro contexto, no qual ganhará uma nova significação.
Ao apontarmos um fio condutor para o discurso presente, pensamos estar atualizando uma memória discursiva, que se reconfigura a cada instante numa rede tecida pelo próprio leitor, que experimenta a reconstrução simbólica que se refaz ao longo da história, na qual o sujeito está inserido e alimenta a ilusão de participar dela, como o pintor do quadro de Velázquez, como ''pinta'' o próprio Foucault (1985, p. 31):

Talvez haja, nesse quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, aos rostos torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda- daquele que a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo - que é o mesmo- foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.

Se compreendermos essa reconstrução de sentidos como parte de um processo, posto que os sentidos realizam-se em um contexto, mas não se limitam a ele, podemos promover, na escola, condições mais significativas de leitura. Ao incluirmos, no processo de construção da leitura a relação do sujeito-leitor com outras formas de linguagem, que não só a verbal, estaremos oportunizando ao aluno a possibilidade de construir a sua própria história de leituras ao estabelecer as relações intertextuais necessárias ao resgate da história de sentidos do texto, cujo contexto-sócio-histórico deve ser levado em conta, tendo sempre em vista que os sentidos (re) construídos têm uma historicidade, um passado e se projetam no futuro.

Novas leituras sempre serão possíveis para um mesmo texto em outras épocas ou por leitores diversos. A leitura da obra de Velázquez, feita por Foucault e retomada por Gaspari, configurou uma nova dimensão a partir do momento em que nos propusemos a recortá-la. Nossos recortes, embora reflitam uma escolha pessoal, apresentando uma seleção consciente da forma de apresentação, demonstram o que afirma Maingueneau (1976) sobre o fato de o conceito de discurso despossuir o sujeito falante de seu papel central para integrá-lo no funcionamento de enunciados, de textos, cujas condições de possibilidades são articuladas sobre formações ideológicas. Nesse sentido reconhecemos ''a ilusão discursiva do sujeito'' referida por Pêcheux (1975), pois a apropriação da linguagem, ou a retomada dos sentidos possibilitada pela linguagem, não se dá num movimento individual, a partir da livre escolha, todavia, sua apropriação é social. Está marcada pelos lugares produtores do discurso. Na verdade, retomamos sentidos preexistentes, quando pensamos ser a fonte do discurso. Ao produzirmos a linguagem, somos reproduzidos nela, tal qual um Velásquez em sua tela. Uma vez que a linguagem não é uma unidade, que apresenta uma relação de incompletude, há que observar que o sentido se realiza no espaço discursivo criado pelos interlocutores, pelos nós que se agrupam no entrelaçamento, na interação.

Assim, retomamos com Brandão o mote do início:
''sem o outro sou menos do que eu mesmo.
Sou a experiência da vida antes ainda de mim mesmo.
Não sou ainda, ou sou eu mesmo incompleto.''

E concluímos, com a imagem de George Deem, (1987), lembrando que uma escola que se pretende atualizada e adequada aos seus educandos não pode ignorar a necessidade de realização da autonomia do sujeito na e pela leitura, e deixar de ser apenas reprodutora de imagens e textos alheios.

Referências


AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer, Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.
BRANDÃO, C.R. Eu outro eutro. In: BRANDÃO, C.R.; ALESSANDRINI, C.; LIMA, E. P. Criatividade e Novas Metodologias. São Paulo: Peirópolis, 1988.
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
DEEM George, School of Velásquez, Óleo sobre tela, 1987.
GREGOLIN, M.R.V. ''Lendo a figuratividade da mídia na escola: formando o leitor. In: FREGONEZI, D. E. Leitura e Ensino. Londrina: UEL, 1999.
MAINGUENEAU, D. Initiation aux Méthodes de L'analyse du discours. Paris: Harchette, 1976.
MAINGUENEAU, D.Genése du Discours. Bruxelas: Mardaga, 1984.
MARCUSCHI, L. A ., Análise da Conversação, São Paulo, Ática, 1986.
ORLANDI, Eni. P. Discurso e leitura. 2. ed. Campinas: Pontes, 1988.
ORLANDI, E. P. “Do sujeito na história e no simbólico'' Em: Escritos Nº 4. Campinas: Nudecri, 1999.
PÊCHEUX, M & FUCHS, C. ' Miser au point et perspectives à propos de l' analyse automatique des discours', Langages, 37, 1975.
PÊCHEUX, M. ''Papel da Memória''. In: ACHARD, P. e outros. Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999.
PÊCHEUX, M.''Sobre os contextos epistemológicos da Análise do Discurso''. Em Escritos Nº 4. Campinas: Nudecri, 1999.
VELÁSQUEZ, http://www.spanisharts.com/prado/velazquez/meninas.htm


RIBEIRO, O. M. . Pintando com novas cores. Uma leitura de Las Meninas. Fluxos. Revista do Instituto de Humanidades da Universidade de Uberaba, Uberaba- MG, v. 01, p. 19-23, 2003.

RIBEIRO, O. M. . Janelas na construção da leitura. Uberaba: Vitória, 2006.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

A Arquitetura da Realidade: Espaço e Criação, Linguagem e Gênesis


A condição Humana- Magritte



Profa Dra. Ormezinda Maria Ribeiro-Aya


Resumo: Este ensaio tem como tema a construção da realidade enformada em linguagens, apres

entando a prática cultural como a responsável por essa arquitetura e a própria Arquitetura como um símbolo desse processo contínuo de produção e reprodução de símbolos, estereótipos e conhecimentos regulados por uma interação de práticas, percepção e linguagens.

Resumen: Este ensayo tiene como tema la construcción de la realidad conformada en lenguajes, presentando la práctica cultural como la responsable por esa arquitectura y la propia Arquitectura como un símbolo de ese proceso continuo de producción y reproducción de símbolos, estereotipos y conocimiento regulados por una interacción de prácticas, percepción y lenguajes.


“O espaço não está em lugar algum. O espaço está em si mesmo como o mel no favo.”
Joë Bousquet


Todo o campo do saber humano, seja ciência ou ficção é perpassado por uma linguagem. E é a linguagem que constrói a realidade embora a julguemos sua geradora. Numa perspectiva fenomenológica não é impróprio repetir Merleau-Ponty (1945): “O olho que vê o mundo é o mundo que o olho vê”. É inconcebível, portanto, um mundo desprovido de linguagem. Há mundo, porque há linguagem. Ecoamos aqui a figurativização bíblica no Livro de Gênesis, quando, pela palavra, Deus criou o Céu e a Terra e tudo o que neles se contém. E nessa evocação simbólica não é demais lembrar que a Terra, sem forma e vazia, foi “construída” por uma evocação sonora e tudo o que nela se fez formou-se a partir da palavra. Ora, a palavra é um símbolo e como símbolo representa, então podemos inferir que a expressão do símbolo criou uma realidade. E assim tem sido desde Gênesis.

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Essa afirmativa pode soar inconsistente e entendida como uma crença a um discurso religioso sem amparo científico, por isso tentaremos legitimar essa tese apoiando-nos na história do pensamento lingüístico, remontando às reflexões socráticas acerca da relação entre nome e coisas, que certamente nos remeterá à noção de uma realidade “fabricada”, também implícita na concepção platônica de linguagem.
Em Platão lemos que a língua constitui um recorte da realidade, que é, na compreensão desse filósofo, fabricada por nossa percepção. Avançando na história dos estudos lingüísticos reportamo-nos ao mestre Saussure (1974, p. 15) que nos assegura que não é o objeto que precede o ponto de vista, contudo, é o ponto de vista o criador do objeto.
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Schaff (1974, p. 146) reitera essa concepção quando afirma que o modo de percepção humano está indissociavelmente ligado à maneira de falar e historicamente ligado a uma práxis social, construída nas relações em comunidade. Schaff (1974, p. 223) fala também dos “óculos sociais”, os modelos ou padrões perceptivos, com os quais os indivíduos enxergam o mundo. São os nossos estereótipos. Por eles vislumbramos uma “realidade” que nos parece ser real. Fabricamos, portanto, uma realidade e acreditamos vê-la com os nossos olhos, ou com os olhos sociais e assim seguimos o itinerário iniciado em Gênesis e “quanto mais avançamos no processo de socialização, mais os códigos verbais se apropriam de nosso sistema perceptual”, afirma Blikstein (2000, p.66-7). Rumo ao apocalipse, seguimos fabricando novos signos e novas realidades. Somos o que diz Foucault (1995) o resultado dos discursos que nos constroem.
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Nesse universo construímos também nossas casas e desenhamos nessa realidade novos e inusitados espaços. E com o poder do olhar humano, com uma percepção fenomenológica organizamos nossa arquitetura. E se entendemos, como Eco (1987, p.187), que a arquitetura é um fenômeno de cultura e como tal se baseia num sistema de signos, então, como signo, podemos inseri-la num espaço de criação que se forma a partir de um olhar, de um ponto de vista, ou com os “óculos sociais” de Schaff.
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Nossos espaços arquitetônicos oscilam entre ausências e exageros. Há sempre faltas e sobras e os momentos de equilíbrio entre uma coisa e a outra são raros. Mas a casa, nos diz Bachelard (1984, p. 200),“é nosso canto do mundo”, “é nosso primeiro universo”. Sem a casa, o homem seria um ser disperso, assegura-nos esse fenomenólogo, em sua poética do espaço, para quem o referente “casa” está embutido de verticalidade e de uma centralidade, que mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida.

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E em Bachelard (1984, p. 203) buscamos sua poética para reafirmarmos o que antes tentávamos dizer por uma linguagem mítica, ou apoiando-nos no discurso da ciência:
E todos os espaços de nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são em nós indeléveis. E é o ser precisamente que não quer apagá-los. Ele sabe por instinto que os espaços da sua solidão são constitutivos. Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do presente, estranhos a todas as promessas de futuro, mesmo quando não se tem mais nenhum sótão, mesmo quando a água-furtada desapareceu, ficará para sempre o fato de termos amado um sótão, de termos vivido numa água-furtada.

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O animal, que nem cria cultura, nem precisa de escola, não edifica sua casa segundo uma realidade construída. Suas casas apenas denotam abrigo, desde a era primitiva até a atualidade e não espelham nada além disso. A casa do homem, ao contrário, conta sua história através dos tempos e espelha a realidade intrínseca na cultura a que o homem está imerso constitutiva e constituinte de símbolos.
A capacidade de simbolizar e de produzir símbolos é que faz a diferença entre o animal e o humano, e é o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura que, ao ser reproduzida na práxis social, reflete e refrata uma realidade construída pelo homem.

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Construímos nossos signos e construímos com eles nossas “realidades”, nossos espaços e neles habitamos. Coincidentemente, (ou não?) nossos signos são fabricados segundo uma ideologia e nossas casas se parecem com o modelo projetado pelo olho social.
Se construímos nossa realidade e nossos signos num processo cíclico de reprodução da práxis, somos essencialmente o que as lentes do mundo refletem e refratam em nós. Enxergamos o mundo, ou a “realidade” conformada no mundo, com as lentes desse mundo. Nossas habitações são o exemplo de nossas representações sociais.
Aqui arquitetura e lingüística se confundem: nossas edificações falam por nós. Os reis moram em palácios, os simples em choupanas. Há aqueles que não têm nem eira, nem beira e ainda os que têm tribeira. Mas todos guardam dentro de si um estereótipo de uma casa que tanto pode denotar abrigo, como conotar lar, família, fraternidade...

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E as salas-de-aulas que habitamos como estudantes e/ou como educadores? Como signos reveladores são dimensões interindividuais ou agenciadas em e como uma determinada cultura que nos cria, recria e molda com poderes muito maiores do que podemos suspeitar. Existem desequilíbrios muito grandes e muito curiosos. Existe aí algo semelhante à desproporção entre um espaço arquitetônico e outro dentro de um mesmo campus. Seriam realidades também criadas pelo olho que vê esse mundo? Ou seriam forjadas sutilmente em nossas concepções, como um quadro de paisagem para não abrirmos a janela?

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Ora, nessas edificações encerramos pessoas, com olhos de ver o mundo, com óculos sociais e irremediavelmente expostas à gênesis cotidiana. Nossa impostação semiológica reconhece, como quer Eco (1987, p. 196), que no signo arquitetônico há, como no signo lingüístico, “a presença de um significante cujo significado é a função que ele possibilita”.

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Os signos arquitetônicos são constituídos por significantes descritíveis e catalogáveis, que podem denotar funções precisas se os interpretarmos à luz de determinados códigos, que por sua vez podem ser preenchidos de significados sucessivos tanto por via conotativa, quanto denotativa, com base em outros códigos. No sentido dado por Eco (1987, p. 198), “o objeto arquitetônico denota uma forma do habitar”. Um objeto arquitetônico, nos diz Eco (1987, p.202), pode denotar a função ou conotar certa ideologia da função, mas pode também conotar outras coisas.
Uma sala de aula com púlpito e tablado podia, num passado muito recente, em termos de história da educação, denotar uma verticalização na relação professor-aluno, relações rígidas de saber e poder, mas hoje pode conotar muito mais a possibilidade de interação entre um grande grupo.

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A construção de salas espaçosas e verticais, com um pé-direito duplo, e um pórtico imponente podia conotar a magnitude das universidades e de seus fins, hoje pode denotar inadequação e distanciamento nas relações aluno-professor.
Pensemos que desde tempos imemoriais já se fazem leituras conscientes ou inconscientes desses símbolos arquitetônicos que circundam nosso universo e se compõem nos espaços que provisoriamente, ou por boa parte de nossas vidas habitamos.
Esses signos, nossas habitações provisórias, mas que nos abrigam por longos períodos, ainda que a idéia de longo seja construída em nossas idiossincrasias, são representações de nossos desejos e sensibilidades que vão além de si mesmos, e constroem assim a sua a face de identidade e realização ou são reflexos e refrações de projeção social?

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Numa perspectiva culturalista, que combina sociedade, cultura e linguagem e que não acredita na existência de um sujeito soberano e de uma verdade a ser alcançada e entende que se deve enfatizar a provisoriedade das múltiplas posições em que somos colocados em função das múltiplas mudanças discursivas que nos constitui, inferimos que a linguagem arquitetônica que nos cerca compõe-se dos múltiplos olhares sociais, das lentes que muitas vezes nos são impostas como um olho mecânico, até para quem não é sequer míope.
É possível, nesse simulacro da caverna, cuja luz nos apresenta ao fundo, quando pensamos que sua claridade nos cegará, quebrar essas sombras que vislumbramos como realidade?

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Se entendermos que a linguagem não é só reflexo, reprodução ou reiteração da práxis, mas que ela pode também desenvolver uma ação dialética e criativa, de forma a desagregar os estereótipos de nossa percepção, podemos inverter a posição do quadro: deixar a moldura lá fora e trazermos a paisagem para a sala. Em outras palavras: a arquitetura da universidade, ou de qualquer espaço habitado para a prática pedagógica pode sim ser transformada ou recriada pela ação da palavra que se faz criadora. E nessa gênesis transgressora, o verbo pode iluminar.
A linguagem que usamos para ler o mundo determina, em grande medida, a forma como pensamos e agimos no e sobre o mundo, uma vez que não existe uma realidade fora da linguagem e dos signos. A linguagem e os signos são constitutivos da realidade. Assim, não existe lugar para uma perspectiva que pretenda enxergar além da aparência do discurso. A aparência é a própria realidade, manifesta em discurso.
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Entendendo que, na linguagem, produzem-se compreensões particulares do mundo, isto é, significados particulares. Tal significado é sempre construído, produzido, de forma contextual, no interior de práticas determinadas. Se as práticas sociais são pontos de criação de signos específicos, então a atividade semiótica é produtiva, não uma distorção ou reflexo de uma realidade material que está situada em outro lugar.
Assim, reportemo-nos a Demo, (2002) quando nos diz que "História e cultura oferece-nos contexto intrínseco da linguagem e interpretação". E, mesmo se tomarmos a cultura em suas diferentes concepções e sentidos, podemos reconhecer que cultura é muito mais um sistema de símbolos e significados pelo qual pessoas e grupos humanos se comunicam e dão sentido ao que sentem, ao que pensam e ao que fazem, do que sistemas de práticas dirigidas à manipulação produtiva da natureza e à ordenação pragmática da vida social. (LARAIA, 1997, p. 60-65)

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Sendo assim, a educação e seu simbolismo são motivados pela cultura e dela se abastecem, pois tanto a história, quanto a educação se compõem de símbolos e geram símbolos que se reproduzem no seio da comunidade na e pela cultura. Ora, essa cultura, simbólica, alimentada pela educação, formal ou não, e projetada na história, é materializada pela linguagem. E numa eterna gênesis criadora segue produzindo símbolos que representam outros símbolos e assim sucessivamente como apregoa Nietzche, para quem a linguagem faz sempre o movimento escavador, ad infinito.
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Arquitetura é linguagem e em toda linguagem há uma arquitetura, no sentido de criação. Arquitetura é símbolo, pois como linguagem não é por si, mas representa. E ao representar cria e recria como reflexo e refração de uma cultura, de um processo constante e contínuo. Arquitetura é, pois, gênesis, e, como tal pode subverter modelos, despir dos óculos sociais que nos fazem enxergar apenas silhuetas nas sombras de nossas projeções de realidade.

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REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BLIKSTEIN, Izidoro. Kasper Hauser. Ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 2000.
DEMO, Pedro. Complexidade e Aprendizagem. São Paulo: Atlas, 2002.
ECO, Umberto. A estrutura ausente.São Paulo: Perspectiva, 1987.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: Rabinow, P; Dreyfus Rabinow, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
LARAIA, R. Cultura. Um conceito antropológico.11 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
MERLEAU-PONTY, M. Phénomenologie de la perception. Paris: Galimard, 1945.
SAUSSURE, F. de. Curso de Lingüística Geral, São Paulo, Cultrix, 1974.
SCHAFF, A. Langage et conaissance. Paris: Antropos, 1974.

Artigo Publicado originalmente na Revista Art & Educação em 2004.

Ai que saudades da Amélia!



Ultimamente ando meio saudosista. E não é só com relação às coisas boas e marcantes. Tenho sentido até, quem diria! Saudades da Amélia. Aquela que era mulher de verdade. Que não tinha a menor vaidade. Que cuidava da casa e não reclamava. É meio paradoxal, mas próprio de uma mulher que se sente cansada de tanta luta. Não a minha luta solitária, mas a de todas as mulheres do mundo. Bem dizia Mário Lago à mulher que não reclamava. Reclamar do quê? Essas amélias tinham maridos provedores, amantes, que se eram infiéis de uma forma, de outra eram fidelíssimos. Conta no cabeleireiro, na boutique, na manicura: que mimos mais distantes de nossa realidade hoje.
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As mulheres que façam coro comigo. Hoje estamos mais às voltas com as panelas, que nos tempos da Amélia. Mas numa compensação às avessas temos que comprar as panelas, colocar a comida nas panelas, pagar a empregada que cuida das panelas, e ainda somos cobradas se o que está dentro das panelas não está a contento. De quem? Daquele que outrora enchia as panelas da casa. E ainda corremos o risco de ver nossos mantimentos ir parar nas panelas de outras.
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Ah! Mulheres! Tão espertas e tão tolinhas ao mesmo tempo! Ganhamos espaço fora de casa. Mas, vejam só: não perdemos dentro. E continuamos ruins de matemática que, nesse caso, é diferente para as mulheres: mais com mais dá mais é para homens. Para as mulheres é sempre menos. Quanto mais, menos. Não percebemos que ao ganhar, perdemos. Que, ao querer ser livres, ficamos presas. Que, ao somar forças e tempo para nossa emancipação, perdemos tempo para nossa satisfação. Temos hoje a mesma obrigação de ser bonita, mais ainda até do que antes, a mesma preocupação com a criação dos filhos, que, se vão mal na escola, a culpa, é claro, é das mães que não cuidam de seus filhos, que não têm tempo para olhar suas tarefas.
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Briga tola a nossa ao querer ser independente. Independente de quê? Somamos atividades às tantas que já nos eram atribuídas desde os tempos de nossas tataravós e ainda temos que prover a casa, os filhos e os companheiros. Esses sim é que ganharam. Ganharam na mega sena acumulada. Continuam a querer a mesma atenção, a mulher bem vestida (com o dinheiro dela) malhada e sarada, com o tempo que lhe sobra pra fazer academia depois da tripla jornada de trabalho.
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Qual a casa que não tem hoje um aparelho de ginástica, geralmente na área de serviço? Enquanto olha os filhos, a Amélia moderna pratica aquela necessária atividade para não ficar distante da concorrência.
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Veja a que ponto chegamos: com a obrigação de ser bonita, corpo de 20, com a cabeça de 40, cabelos, unhas e seios bem cuidados; mãetorista que não pode se atrasar, funcionária exemplar, que é para não perder o emprego. Afinal, as contas no fim do mês têm um destino dentro de casa: a caixa postal daquela que cansou de ser Amélia.
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Que saudades da Amélia! Sem vaidade. Mas nem precisava, era querida e adorada. Quem hoje compõe uma canção dessas para a mulher? Mulher hoje é cachorrona, poposuda e outros adjetivos similares...
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Mulher de verdade era mesmo a Amélia, nem fazia esforço pra ser notada. Sem academia, hora extra no escritório, ou intermináveis seções no cabeleireiro, na manicure, na pedicure, na esteticista, no cirurgião plástico...
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Minha avó paterna tinha Amélia, no segundo nome e primeiro na atitude. Eu, ao contrário herdei o seu primeiro nome, cujo significado é “seguindo os passos do coração”. É um nome forte, que não repete uma única letra. Gosto dele, apesar ser estar em desuso: nomes de nonas italianas não são comuns nas netas de hoje.
Em minha geração era uma justa homenagem. O segundo nome herdei de minha avó materna.
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Mas às vezes fico imaginando quão diferente seria se a composição de meu nome fosse outra: continuaria homenageando as duas avós, todavia, em vez do primeiro nome eu tivesse o segundo de minhas duas avós. Eu seria Amélia Augusta.
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A verdadeira e gloriosa Amélia, com todos os direitos e honras que uma amélia, sendo augusta, deveria merecer.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Fagulhas de uma Fênix- Prosa


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Escrever sempre foi um exercício catártico. Antes escrevia quando estava melancólica. Saudosa das coisas que não conhecia, que ansiava viver. Saudosa das minhas próprias fantasias, que pareciam reais. Hoje, com a saudade de quem viveu uma fantasia tão real e, acreditando piamente que elas de fato existiram, sinto falta delas, então escrevo para sentir novamente a sensação.

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Acredito que, mais do que atores, somos autores de nossa própria história.
A minha. Hoje eu sei. Estava escrita nos meus cadernos amarelados com os anos, nas folhas de rascunho, no verso de qualquer papel, até mesmos nos do banheiro, lugar em que a inspiração e a vontade de registrar o pensamento que teimava em se manifestar era constante. Cenário prosaico para fragmentos de textos que eu pensava ser poesias. Fragmentos de um poeta, no banheiro. Título interessante para um livro de poemas, se tomado até a locução adverbial. Acrescida essa, um sugestivo título para uma comédia. Mas o engraçado é só a irreverência, pois meu lado cômico nunca foi acentuado.
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O que importava mesmo era o pretexto para escrever: o lugar e o papel eram detalhes. Na aula de História do Brasil esbocei muitos poemas. Circunstancialmente de crise existencial. Não que o tema da aula fosse inspirador, ou que se relacionasse com meus escritos. Ao contrário. Era o avesso, do avesso, como diria Caetano. Nunca acreditei muito na história contada nessas aulas, mas gostava da matéria e ainda me recordo da professora, Dona Olga. Ela nem imagina que rabiscava poemas nas aulas dela. Era muito séria e exigente, mas me passava uma aura de simpatia que me cativava. Talvez por isso sua rigidez nunca tenha limitado minha vontade de escrever.
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Nas aulas de Física não escrevia nada. Acho que nem mesmo as fórmulas. Mas gostava de ler. Escondida pela enorme e velha carteira, ficávamos eu e meus livros que tomava emprestados na Biblioteca Pública. Perdida no encantamento das letras que me fascinavam, eu não queria saber de números. Pra que? Queria viajar na literatura, conhecer novos mundos, enxergar novas paisagens. Antes que o professor me tomasse o livro e o entregasse ao diretor até que o empréstimo vencesse.

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Pagava a multa. O velho professor de Física me tirava o livro, o diretor consumia minhas economias com seu “sábio” castigo, mas ninguém me tirava o encantamento. Essa viagem eu fazia embarcando na fantasia que cada história me trazia. Hoje penso que o castigo que eu recebia por não ser boa aluna, na concepção dos pregadores de Newton, foi um tiro que saiu pela culatra. Quanto mais me impediam, mais eu queria ler. E essas histórias me capturaram.
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Ler e escrever caminham juntos. Quando não lia M. Delly e toda a coleção das Moças, lia os clássicos da Literatura Brasileira e Universal. Também muitas fotonovelas, muitas Júlias, Sabrinas e Biancas. Quantas e quantas noites em claro para terminar a leitura de um livro. Pra mamãe eu dizia que lia para fazer um trabalho no dia seguinte. Na escola lia escondendo meu objeto de desejo, de fuga e de descobertas, atrás da carteira, entre um exercício e outro, entre um questionário pouco atrativo, entre conjugações de verbos. Todos eles intransitivos pra mim.

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Alguns me deixaram marcas profundas e indeléveis. “Entre Dois Amores”: essa obra me custou o lanche da semana toda. Ficou na gaveta do diretor, pra satisfação sádica do professor de Física. O livro virou um filme, grande sucesso em Hollywood, um clássico do cinema e da literatura mundial, que vim a assistir depois de muitos anos, mas não com o mesmo gosto com que me debrucei sobre suas folhas. Do professor não guardo mágoa. Ao contrário, sou-lhe grata. Devo a ele um espírito crítico e uma sede de ler, sem falar na habilidade próxima das ações clandestinas que desenvolvi ao ler rapidamente, sem deixar de fazer outras coisas.
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Adolescente gosta de desafio, do que lhe é proibido. Interessante que as revistas pornográficas, os livros sobre sexo, as fotonovelas não me foram impedidas. Mas os livros sim. Então, para não fugir à regra, quis o que não podia. Como um namorado não consentido. Por ele, fazia planos, aguardava ansiosamente o sinal da última aula tocar, para me dirigir ao lugar em que me encontraria com meu objeto de desejo proibido: a Biblioteca Pública, que ficava entre o caminho da escola e minha casa. Pouco me importava se o estômago reclamava de fome. Procurar na estante algo que não tinha lido era muito mais saboroso. O alimento que aquelas páginas me traziam era muito mais nutritivo.
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Alguns ficaram de uma forma especial: o célebre “Cem anos de solidão”, a incomparável obra de Gabriel García Márquez foi um desafio: precisei esquematizar uma árvore genealógica para ler sem me confundir aquela saga com tantos nomes repetidos. Outros que me encantaram profundamente “O velho e o mar” de Ernest Hemingway, Enterrem meu coração na curva do rio” de Dee Brown, “Não apressem o rio. Ele corre sozinho” na profundidade de Barry Stevens; “Madame Bovary” e “Boulervard e Pecuchet”, de Gustave Flaubert. “Operação Cavalo De Tróia” 1 de J. J. Benítez, “Ana Karenina”, o romance clássico de Leão Tólstoi;

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“A Ilíada” e “A Odisséia”, de Homero, clássicos que dispensam comentários. Também “Os Lusíadas”, esse um pouco por obrigação, mas que acabou se transformando em interesse. Dele o episodio de Inês de Castro foi muito forte para meu coração adolescente. De Machado de Assis li quase todos: “A mão e a luva”, “Quincas Borba”, “O alienista”, “Esaú e Jacó”, “Ressurreição”, “Helena” e “Iaiá Garcia” e, principalmente “Dom Casmurro”. Até hoje me pego intrigada com os olhos de ressaca da Cigana dissimulada. José de Alencar foi outro que me capturou em suas tramas: “Senhora”, “Cinco minutos” e a “Viuvinha”, “O Guarani”, “Lucíola”, “A pata da gazela”, “O tronco do Ipê”, “Ubirajara”, “Diva”, ‘’O gaúcho”, “O sertanejo’,’ e meu preferido: ‘’Iracema’’, a virgem dos lábios de mel, cujo nome é anagrama de América. E outros de tantos outros autores da literatura nacional e universal como: “Casa de pensão” e “O cortiço”, de Aloízio de Azevedo; “Inocência”, de Visconde de Taunay; “A Escrava Isaura’’e ‘’O seminarista’’, de Bernardo Guimarães; “O Atheneu”, de Raul Pompéia; “A normalista”, de Adolfo Caminha; ‘’Maria Dusá”, de Lindolfo Rocha; ‘’A moreninha’’, de Joaquim Manuel de Macedo; ‘’As pupilas do senhor reitor’’,.de Júlio Diniz; ‘’O conde de Monte Cristo’’, de Alexandre Dumas; “Dom Quixote”, do célebre Miguel Cervantes; “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carrol, “Meu pé de laranja lima”, de José Mauro de Vasconcelos; “O menino do dedo verde”, de Maurice Druon; “O pequeno de príncipe”, de Saint Exupérry; “Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach, “Primavera Negra” e “Trópico de Câncer”, do polêmico e contestado Henry Miller; “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde; “O diário de Anne Frank”, relatos escritos a uma amiga imaginária; “A Cor Púrpura”, de Alice Walker; “O Nome da Rosa", do escritor e ensaísta italiano Umberto Eco; “Pássaros Feridos” de Colleen McCullough. “As sandálias do pescador”, de Morris West, “Clarissa”, “Olhai os lírios do campo” e um “Certo Capitão Rodrigo”, de Érico Veríssimo; “Éramos Seis”, de Maria José Dupré, “Justino, o retirante”, de Odete de Barros Mott; “O Quinze”, de Raquel de Queiroz; “O macaco e a essência”, de Aldous Huxley; “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego; “Sagarana”, do mestre Guimarães Rosa; “Chapadão do Bugre”, daquele que definiu a saudade, Mário Palmério, a esses últimos atribuo meu interesse pelo falar regionalista, dentre tantos outros traduzidos do francês para a Coleção Menina Moça e meus primeiros esboços de leitura: a coleção completa de Monteiro Lobato na biblioteca do grupo escolar que estudava, batizada em homenagem ao criador da boneca tagarela.

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Todos eles entraram em minha pasta, cheia de cadernos, nos quais eu pouco escrevia, a não ser meus poemas. E eram folheados avidamente por detrás das velhas carteiras da Escola Estadual ou das carteiras um pouco mais modernas da Escola Normal. Mas eram sempre os meus fiéis companheiros. Alguns eram indicados na escola, para uma ficha de leitura. Mas a grande maioria era escolhida por mim, pelo interesse no título ou porque seguia a orientação da bibliotecária, e muitos eu adquiria por meio do Círculo do Livro.
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Nos cantos escondida, no guardanapo do restaurante, nas capas dos cadernos e em tudo que fosse plano, escrevia: fagulhas de inspiração, que eu pensava ser poemas. E, se não eram, hoje são. Se antes eram registros de adolescência para fugir da mesmice e da monotonia das aulas que não me encantavam tanto, do cotidiano que se apresentava sem cor e sem sabor, hoje podem ser o que eu quiser que sejam. Não me envergonho deles. São restos digeridos do que fui, ou gostaria de ser. Eram a busca de uma identidade, que só poderia ser projetada e dada à luz por mim, gerada no meu eu adormecido. Lia pelo prazer e escrevia para não morrer. Meus textos eram meus restos, minhas cinzas como uma fênix que não se deixa morrer; nos versos mal rimados eu renascia e me encontrava.
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Descobri que falo muito por culpa de minha iniciação à leitura, aprendi com a Emília, de Lobato. Nenhum outro objeto me encanta mais do que um livro. E soube bem depois que meu gosto pelo espaço da biblioteca já estava predestinado: não foi por acaso que nasci em 12 de março, dia da bibliotecária, dia escolhido em homenagem ao grande poeta, humorista, engenheiro, publicitário e bibliotecário Bastos Tigre.
Só não sei se ele era baixinho...

A Charlie Chaplin e a Lewis Carroll


Eu às vezes fico nessa de curtir uma saudade das coisas que não vi, das pessoas com as quais não convivi. Uma saudade estranha, dessas de fazer suspirar. Às vezes sinto vontade de ficar dias inteiros fazendo só o que dá na telha a la Charlie Chapin, encostada na lua.

O que me angustia é que não consigo ficar muda. Se eu falasse menos, talvez dissesse mais. Quem sabe meus gestos falassem por mim. Já ouvi de Drummond que o discurso, acalanto burguês não envaidece o irreverente Chaplin, e o silêncio fala muito mais que eloqüentes palavras.

Mas cada dia mais fica difícil não me pronunciar diante do que percebo acontecer em minha volta. A cada dia mais fica impossível fazer de conta que não escuto a voz das entrelinhas. Elas gritam e se comunicam. Elas não estão mortas e querem respostas.
Talvez isso passe. Espero. Talvez eu precise de um tempo para me ouvir. Ou talvez eu só esteja precisando com urgência de férias. Mas penso que talvez fosse melhor ir ao cinema, ou alugar um daqueles filmes de Carlitos. Ah! Esse adorável personagem que simboliza tudo que eu quero dizer, sem nada pronunciar. Eu ouço seus gritos mudos, sua eloqüência persuasiva e até o arfar de sua respiração. Na verdade o que escuto são meus sons. Carlitos fala por mim. Quisera mesmo saber falar como ele, sem ter que pronunciar. Quisera ser ouvida de fato só pelo olhar, ou dar de ombros. Eu dispensaria a casaca, mas confesso que a bengala me atrai. Gosto da sensação de apoio que ela representa.

Acho que essas fantasias estão ultrapassadas. Já não sou a garotinha que ia ao cinema todas as quartas e domingos. Já sou balsaquiana. Já não era sem tempo de me concentrar em coisas serias? Volver a los dezessete agora? Isso é pra Violetas e Mercedes. Não pra mim. Acho que estou me deixando levar por essa melancolia porque ando ansiando por momentos mágicos enquanto vivo tantos momentos trágicos.
Ultimamente ando pensando muito em Alice, aquela que encolheu de tamanho e ficava fazendo perguntas até para os bichinhos. Não sei ao certo porque, mas desconfio que estou cansada de tanta seriedade. De tanta cientificidade, de tanta teoria.
Talvez eu queira vestir a roupa dessa personagem, para adentrar esse buraco incerto que é meu próprio coração. Esse sim é o país das maravilhas e dos paradoxos. Talvez eu não seja uma Alice, mas Célia, seu anagrama. Gosto desse jogo de palavras que borbulha em meu cérebro.

Penso que os anagramas são muito mais do que um quebra cabeça pra ser montado, enquanto não se faz uma lingüística séria. Mas essa descoberta brilhante não é minha. Isso é coisa de um grande lingüista.
Grande-pequeno, certo-errado, por ali-por aqui; cedo-tarde, perto-longe, gostoso-ruim ... e mais, muitas, inúmeras incoerências de coerentes devires que pontuam o país das maravilhas paradoxais, das muitas Alices que guardamos e que por vezes não deixamos chegar à superfície dos sentidos.
Uma superfície repleta de palavras esplendidas, insólitas, esotéricas, crivos, códigos e decodificações, desenhos e fotos, um conteúdo psicanalítico profundo, um formalismo lógico e lingüístico exemplar. E no mundo da linguagem e do inconsciente dão lugar a um jogo de sentidos e do não senso, como num caos-cósmico.

Assim, despida da seriedade que convém a uma lingüista, fico brincando de cruzar os caminhos de grandes personagens da história, da mitologia, dos contos de fadas e dia desses pensei na hipótese de Alice conhecer Narciso e salvá-lo da morte do encantamento com a própria imagem.
Hoje fico imaginando se Alice conhecesse Carlitos. E nesses devaneios imagino que os dois sairiam dançando na chuva como Geene Kelly e Freddy Astaire. Afinal, ambos são destemidos e não receiam o ridículo, não têm medo de se molhar.

Se Alice abre a boca e pergunta, Carlitos indaga com os olhos, com todos os músculos faciais. Se Alice é esguia e se encolhe para caber em qualquer lugar, Carlitos, desajeitado, como qualquer gente do mundo- inclusive os pequenos judeus de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos, vagabundos que o mundo repeliu, também entra em todo lugar: nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas, nas fábricas, barbearias, delegacias.

Os cachos dourados da menina seriam realçados se cobertos com o chapéu-coco do vagabundo, cujos olhos se derreteriam todo ao contemplar aquela doce e curiosa criatura.

Viver essa fantasia, onde o ser confunde-se com o não ser, é particular dos paradoxos do mundo dos sentidos, em que a história de Alice se cruza com a história do grande vagabundo que encantou minha geração e penso ser mais do que um delírio de alguém que está cansada de escrever laudas e laudas de relatórios, diários, sínteses e análises. Acho mesmo que é transmutar em experiência encolhendo como Alice, no verdadeiro sentido. É viver o devaneio ora renovando-os, ora recolhendo-os, ora inventando-os, ora preparando-os.

O lugar do mundo dos sentidos, que são vividamente experimentados por Alice, sem pudores e instintivamente, só é possível degustar no campo da fantasia. E essa merecida liberdade dos devires permitida à personagem de Carrol é quase uma terapia que bem caberia a uma balsaquiana que não pode volver a los dezessete.
E essa série de contrários se dá nas transmutações dos devires. O que é, em segundos torna-se o que não é. Mas isto só é perceptível a Alice, ou aos estóicos. Nós não possuímos os sentidos apurados a ponto de percebemos as mudanças ínfimas que regem o movimento, o efeito das causas múltiplas. Percebemos apenas o ato mover como ação conseqüente das causas, apenas os efeitos de superfície.

Aí então eu ouso promover o encontro da dissimulada Capitu com a ingênua menina Alice. Como? perguntariam os doutos e sábios estudiosos das teorias literárias. É mais razoável o encontro de Simão Bacamarte com a autora dessas letras excêntricas, que não fazem o menor sentido, e não são ao menos anagramas. Sei que não tenho sequer a licença poética. Não sou doutora em teoria literária. Nem trago a verve de um Drummond, ou de uma Adélia Prado pra subverter qualquer conceito, mas acredito no que proponho.

Os olhos oblíquos e de ressaca da Cigana me intrigam. E Alice também. O que posso fazer? Ignorar minhas perguntas? O que seria do mundo se não fossem as perguntas? Se Galileu não tivesse ousado perguntar a seus botões se o mundo não seria de outra forma, talvez tivéssemos prestes a chegar ao fim do mundo. O abismo foi dissipado com sua pergunta. Quem sabe não despencaríamos no vazio se Newton não questionasse a gravidade. Estaríamos, provavelmente, contemplando as sombras das cavernas não fossem a atitude de Platão e a curiosidade de Edson, (o da lâmpada) e, entre eles outros tantos curiosos que revelaram a luz ao mundo, em toda sua acepção.

Gosto de Alice porque ela pergunta. Sem medo de ser ridícula. Quem sabe se Bentinho tivesse arriscado perguntar à Capitu se ela o traía, Machado não teria descido ao túmulo carregando esse enigma e seríamos poupados dessa eterna curiosidade. Afinal, Capitu traiu, ou não traiu?

Penso que Alice não teria o menor pudor de perguntar, mas não sei se a Cigana responderia. Talvez respondesse com o olhar, que, mesmo oblíquo não poderia mais dissimular diante da menina que transmuta. Ela é maior agora e era menor antes. “É ao mesmo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos.”

Alice não cresce sem ficar menor, e nem fica maior sem ficar menor. Em todas as coisas há um sentido determinável, como afirma Deleuze: “O paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”.

A cigana dissimulada não enganaria. Alice não deixaria. É muito difícil fugir de suas perguntas. Chego a pensar que até Carlitos responderia em alto e bom som às incansáveis perguntas dessa irrequieta menina.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Na gramática da escola cidadã todo verbo é transitivo, todo sujeito é composto.



Ormezinda Maria Ribeiro-Aya
Dra em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp
Ensaio publicado na Revista Outras Palavras em 2007



“Eu quase nada sei, mas desconfio de muita coisa”
(Guimarães Rosa)


RESUMO

O presente ensaio apresenta, com o emprego de verbos conjugados de uma forma metafórica, uma reflexão sobre o(s) sentido(s) da Escola Cidadã, com vista à percepção da educação como o desafio ao impensado, ao não planejado ainda, ao não decidido, ao “a ser construído por todos".
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INTRODUÇÃO


Educar, pensar e agir

Não há como falar em Escola Cidadã sem lembrar Paulo Freire, para quem educar é impregnar de sentido cada ato do cotidiano.
Com esse gancho, inicio esse exercício de produção de um texto que se propõe a tecer algumas conjugações possíveis no campo da educação. A terminologia gramatical é empregada não para explicar a língua e suas articulações, mas como figura metafórica, para, numa metalinguagem figurativizar as ações possíveis e desejáveis em uma Escola Cidadã, entendendo que a Escola Cidadã é toda aquela que permite as relações abertas e igualitárias de poder.
Pensar em uma escola que garanta a manutenção da cidadania, não como um lugar em que se adquira a cidadania, deveria ser o objetivo precípuo de toda e qualquer instituição, seja ela pública ou privada, do primeiro ou do terceiro setor. Mas pensar simplesmente não basta, é preciso agir em prol desse fim. Pensar e agir. Verbos essenciais e necessários à conquista da manutenção da cidadania via escola. São verbos de ação. Ação que demanda participação.
Para que essa proposição seja tomada como valor de verdade (pelo menos dentro da provisoriedade das verdades) há que se perguntar: qual o objeto da Educação na vida presente e na vida futura que nos cabe conjugar para pensar e antecipar as possibilidades de uma escola cidadã?
Qual o lugar da Educação no processo de manutenção das condições de cidadania?
Com essas indagações rascunharemos algumas conjeturas a respeito desse tema que está longe de ser esgotado e passível de ser polemizado. Vamos a ele.
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Criar, criticar, participar

Antes de tudo é premente ter a coragem de encarar o desafio de olhar com outros olhos as possibilidades de conjugações da educação para descobrir interligações, interconexões e intercomunicações onde parece haver hiatos e intransitividades.
Há que se ter uma clara consciência das regências dos verbos "criar", "criticar", "participar", para que sua concordância com os sujeitos da educação seja privilegiada. Nesses três verbos está contida a alma da Escola Cidadã.
À guisa de definição, em busca de uma metalinguagem apropriada à questão que ora proponho, explico: criar é dar vida, é possibilitar a erupção do novo, ou de uma nova forma de ver o já conhecido. Para se possibilitar a manutenção da cidadania é preciso conjugar saber com aprender como algo vivo, dinâmico, irrepetível, que pede sempre um complemento; criticar é ação de repensar o que está posto, sem se condicionar ao suposto. Trata-se de subordinar as ações pressupostas à imaginação crítica e ao desafio do impensado, de modo a suplantar as ditas verdades absolutas e cristalizadas; participar, nesse sentido, é verbo de ligação que visa estabelecer o liame entre o potencial criativo e a ação criativa que devem ser construídos por todos: é locução verbal e depende de sujeitos compostos.

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Tempos e modos verbais da Escola Cidadã

Em princípio, nenhum verbo conjugado nesse ideal de escola é anômalo ou defectivo, antes, porém, esses verbos são abundantes e de uma transitividade tal que transgridem as normas de qualquer escola que se configure no modelo tradicional. Na Escola Cidadã há que se privilegiar o gerúndio, de forma que o estar sendo é mais do que uma teoria existencialista, na visão de Sartre mas o exercício de uma ação auto-criadora na qual o cidadão se reconhece, ele mesmo, como um construtor de si próprio e de suas próprias leis, como apregoa Rousseau .
A articulação entre tempos e modos há que garantir o compromisso responsável com o presente, num respeito às raízes do passado, sem, contudo, deixar de perceber o futuro como uma construção solidária em que cada momento do cotidiano presente possa garantir uma educação por toda a vida.
Mais importante do que o tempo, em educação, são os modos como se organizam as ações que envolvem o processo educativo. Ancorados no pensamento de Foucault , afirmamos que o que deve estar em jogo não é mais a definição do que seja a Escola Cidadã, mas o como essa escola se apresenta numa sociedade que sobrevive num tempo de descontinuidades e rupturas, um raro tempo de descobertas e de transformações, como diria Brandão , para quem o principal atributo do espírito humano está no movimento, na ação de mudar. O verbo principal dessa oração é, pois, “transformar”.

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Argumentar, emancipar, possibilitar

O homem, um ser social por natureza, utiliza-se de símbolos para mediatizar sua relação com os semelhantes ou com a própria natureza. Essa interação social do homem na linguagem ou por meio dela caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade. É pelo seu discurso, ou ação verbal dotada de intencionalidade, que o homem tenta influir sobre o comportamento de seu semelhante ou fazer com que esse compartilhe de suas opiniões. Portanto, o ato de argumentar constitui-se em um ato lingüístico fundamental, pois passamos a maior parte de nosso tempo defendendo nossos pontos de vista, falando com pessoas, tentando motivar nossos filhos, alunos, professores, clientes, etc. Contudo, as informações em si não são o mais importante, mas o ato de transformá-las em conhecimento. As informações são tijolos e o conhecimento é o edifício que construímos com eles.
Para essa definição recorremos a Abreu (1999, p. 23), para quem "Argumentar é saber integrar-se ao universo do outro. É obter aquilo que queremos, mas de modo cooperativo e construtivo, traduzindo nossa verdade na verdade do outro".
O verdadeiro sucesso, dentro e fora da escola, depende da habilidade de relacionamento interpessoal, da capacidade de compreender e comunicar idéias e emoções. Quando entramos em contato com o outro, não gerenciamos apenas informação, mas também a nossa relação com ele.
Muitas vezes um diálogo é puro gerenciamento de relação. No espaço privado gerenciamos mais informação do que relação. No espaço público por motivo de sobrevivência social as pessoas procuram gerenciar, além de informação, a relação.
Abreu (1999, p. 26) nos diz que:
Argumentar, é, pois, em última análise, a arte de gerenciando informação, convencer o outro de alguma coisa, no plano das idéias e de, gerenciando relação, persuadi-lo, no plano das emoções, a fazer alguma coisa que nós desejamos que ele faça.
Tudo aquilo que pensamos e fazemos é fruto dos discursos que nos constroem, enquanto seres psicossociais, reafirma esse lingüista. Somos moldados por uma série de discursos: científicos, jurídico, político, religioso, do senso comum, etc. Desses, o mais significativo é o discurso de senso comum, pois se trata de um discurso que permeia todas as classes sociais, formando a chamada opinião pública.
Argumentar, então, apresenta-se como um verbo essencial numa escola cidadã. E isso não é novidade. Os antigos romanos, inventores da república, buscaram dos gregos antigos a concepção de cidadania e compreenderam bem o caráter capital da argumentação, pois fizeram dela o núcleo definitivo de todo ensino e o fundamento da cidadania.
Mas, alerta-nos Breton (1999, p.20) “o exercício de uma argumentação cidadã é, ao mesmo tempo desviado pelas trágicas possibilidades de manipulação da palavra”.
Saber argumentar, portanto, não é luxo, é necessidade. E Breton (1999, p. 19) questiona se não seria o fato de não saber argumentar uma das grandes causas recorrentes da desigualdade cultural, que se sobrepõe às tradicionais desigualdades sociais e econômicas reforçando-as. Nesse sentido cabe uma pergunta que tomo emprestada a Breton, mais constatativa do que proposicional: “não saber tomar a palavra para convencer não seria, no final das contas, uma das grandes causas da exclusão?”
Partindo-se do princípio de que a argumentatividade está presente em toda e qualquer atividade discursiva, tem-se também como básico o fato de que argumentar significa considerar o outro como capaz de reagir e de interagir diante das propostas e teses que lhe são apresentadas. Equivale, portanto, a conferir-lhe status e a qualificá-lo para o exercício da discussão e do entendimento, por intermédio do diálogo. Na verdade o envolvimento não é unilateral, tendo-se uma verdadeira arena em que os interesses se entrechocam, quando o clima é de negociação, e em que prevalece o anseio de influência e de poder.
O discurso persuasivo, aquele destinado a agir sobre os outros por meio do logus (palavra e razão), envolve a disposição que os ouvintes conferem aos que falam (ethos) e a reação a ser desencadeada nos que ouvem (pathos). Esses são os três elementos que irão figurar em todas as definições posteriores e que compreendem o instruir (docere), comover (movere) e o agradar (delectare). Partindo da noção de juízo básico em Retórica, aquele a quem se fala é também juiz, daí o caráter interativo e dialógico em que apóiam as Neo-Retóricas.
Reportemos-nos a Olivier Reboul, para quem o ensino não pode jamais prescindir da retórica, pois o ensino não pode prescindir da pedagogia e toda pedagogia é retórica. O educador, ao fazer a transposição didática, entra no terreno da retórica para prender a atenção, ilustrar os conceitos, facilitar a lembrança, motivar ao esforço. A retórica é um instrumento de ação social, quando ao empregar a dialética em sua parte argumentativa entra no domínio da deliberação, não como jogo especulativo, mas no terreno das possibilidades, do verossímil. Não delibera sobre o que o que é evidente, todavia, sobre fatos incertos, mas que podem realizar-se, e realizar por meio dos próprios sujeitos que argumentam. A retórica é, pois, uma aplicação da dialética, no sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de persuasão. (REBOUL,1998, p.37).
Outros verbos, entretanto, são necessários a essa concordância: emancipar e possibilitar são dois deles. Emancipar, aqui, é sinônimo quase perfeito de possibilitar. Não é só reflexivo, mas uma ação que implica apontar para o outro, permitir-lhe ser, pelo exercício consciente da ação cidadã, pela e na educação.
São transitivos, diretos ou indiretos, pois em sua regência pedem um objeto: um outro. Objeto que pode vir a ser sujeito, composto, próprio, derivado da motivação e da perspectiva criadora que rege a ação educativa da Escola Cidadã, mas sempre um outro.
Mas eis que daí surge a grande pergunta da educação: como educar o outro como outro? Está aí um desafio para os educadores e a justificativa para o estabelecimento de uma Escola Cidadã.

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Educar o outro como outro

Conhecer primeiro a si, para depois conhecer o outro, no terreno da educação, na relação professor-aluno, é mais do que refletir a máxima socrática: é procurar a transformação das próprias concepções a partir de um olhar interior que se refrata no exterior, na práxis pedagógica, no sentido dado por Cunha (1998, p. 82) como “a prática refletida”, concebida em unidade com a teoria, “a ação que subsidia o pensamento para a construção de novas idéias e diferentes intervenções da realidade”. É, ainda, pensar a práxis como uma ação coletiva, técnica, econômica, social como fundamento e juiz do pensamento teórico, da ideologia, como salienta Lalande (1996, p. 1287).
Mas há que se pensar nesse outro como um sujeito que, instrumentalizado pela educação, seja capaz de agir sobre o mundo e ao mesmo tempo compreender a ação exercida.
Os verbos aqui são reflexivos: conhecer-se como agente e paciente da ação educativa; instrumentalizar-se com todas as ferramentas possíveis para que se possa conjugar conhecer e aprender, aprender e apreender, apreender e construir, construir e reconstruir, e, sobretudo, agir.
Conhecer é composto de construir, e são verbos que se conjugam sempre sobre a base de um novelo de ações, e é sobre a lógica desse entremeado de ações que é preciso agir para poder abrir-se para a flexibilidade e a transformação, portanto, nessa gramática aparecem também os verbos “experimentar” e “reorientar”.
Experimentar pressupõe uma busca, uma tentativa de aprender por si mesmo corresponde a um estar se ensinando e um estar aprendendo, forma composta que não determina início ou fim dessa ação. É ato contínuo e constante que leva ao “reorientar”, pois o trabalho de saber, numa Escola Cidadã instaura a cada instante, como um momento único e irrepetível, um processo intersubjetivo em que cada ser-em-educação, aquele-que–aprende-consigo-e-com-o-outro, o sujeito-agente, autor pleno e convicto de sua condição de aprendente, inaugura, a cada momento, o ser-estar-em-educação. Sujeitos compostos nessa relação dialógica entre conhecimento, ação e atitude cidadã. Encadeados nessa combinação que nominaliza o verbo, mas autônomos nas funções que exercem, dentro e fora da escola.
Na Escola Cidadã, há que se criar condições interativas para que um fluxo de saber circule, esteja livre, seja disponível e seja formado por coordenação, jamais por subordinaçao. Nessa escola, ensinar-ao-outro é sinônimo de ensinar-com-o-outro, ou seja, a escolarização deverá propiciar aos seus sujeitos-em-educação a oportunidade de uma construção interativa entre conteúdos desejáveis e necessários ao conhecimento objetivo, exterior ao mundo da escola, e o mundo da vida
Há que se possibilitar um espaço interior para se tecer uma rede de descoberta pessoal e solidária de descoberta de um saber que se estenda natural e tranqüilamente ao espaço exterior, e que seus sujeitos exercitem também a liberdade de, ao trabalharem em sua rede, conjugar também o verbo construir e os de seu grupo “desconstruir” “destruir” “reconstruir”, tal qual a Penélope de Ulisses.
O sujeito da Escola Cidadã há que garantir o seu direito de participar de maneira o mais livre e motivada possível da escolha de seus objetos do conhecimento. Não para saber, no futuro, o que o outro sabe ou como o outro sabe, mas para que tenha uma plena consciência de seu saber, para que seu saber tenha sabor.
Para se sustentar como Escola Cidadã, é urgente que as instituições de ensino deixem de se preocupar só com conteúdos, mas que se dediquem também aos processos de aprendizagem. Não se trata de negar a importância dos conteúdos, mas de se ter a preocupação com a busca de conhecimentos significativos. E isso só pode ser definido pelo próprio-ser-aprendente.
A criatividade e o processo criativo são muito mais importantes do que o já inventado, o já estabelecido, o já formalizado, como conteúdo de uma disciplina qualquer. A sala de aula da Escola Cidadã há que se constituir como um laboratório de exercício de vida e da existência, feita de hábitos e costumes, de utopias e trabalhos, de sonhos e desejos, de paixões e projetos, de inventividade e criticidade.
É nessa escola em que o outro-que-não-sou-eu, a despeito de ser sujeito composto, pode ser único e solidário com os outros-que-não-são-ele e de fato educar-se no diálogo e no entrelaçamento das múltiplas atividades que redundam na autonomia e na liberdade de ser e estar, de estar-sendo e de deixar de ser, e, assim, declarar-se sujeito, senhor de suas escolhas e de seu conhecimento.
Ora, se aprender é um processo criativo, ativo e inovador que se auto-organiza, aprender e saber devem integrar diferentes tempos e diferentes modos de conhecimentos, de forma tal que essa ação conjugue as diversas formas e os inumeráveis modos de saberes, adquiridos e vivenciados em diferentes momentos de nossa vida. Aprender também é conjugar o verbo “organizar” em que o todo, e as partes desse todo, sejam sentidas e não isoladas em espaços diferenciados. O saber, assim combinado cria a sua ordem em cada um de nós e o conhecimento cria a ordem das relações entre nós. Somos não o que sabemos, mas a conjugação do conhecimento que aprendemos a integrar de maneira significativa. Nesse sentido a consciência socrática nos encaminha para a constante e crescente necessidade de buscar a cada dia novos e múltiplos saberes.
É a consciência de ser de tal forma que possa ser também de outro, nos diria Foucault.

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O sujeito da Escola Cidadã

O ideal da Escola Cidadã é que cada pessoa se descubra sendo o sujeito pleno de seu próprio conhecimento. Há que sentir fome e sede de conhecer. Tomo aqui, emprestada de Adélia Prado uma expressão também empregada por Ruben Alves para falar de educação: “Não quero faca, nem queijo, eu quero é fome”.
E essa fome de que nos fala Adélia não pode ser em grau zero. Há, todavia, que ser estimulada, pois é dela que nasce o desejo de saber, com sabor.
O metabolismo do corpo faminto e o desejo de saciedade são semelhantes ao desejo de conhecer. A dinâmica do instinto básico de sobrevivência e a do conhecimento estão interligadas; fazem parte de um mesmo processo, pois os sistemas de interligações, de interações, de intercomunicações e de integrações complexas com o próprio ambiente de que somos não são apenas partes, mas eixos, feixes de relacionamentos, de significações que compõem um todo organizado.
O sujeito da Escola Cidadã tem fome, vai à escola pra se alimentar. Não do alimento perecível e escolhido por políticas alheias ao apetite do educando, ou estocado em depósitos controlados por um almoxarife, especialista em listas, em números de mercadorias. O alimento que desperta o apetite do sujeito dessa escola é escolhido por ele, colhido na hora, fruto da safra, temperado por um cheff que glamoriza o prato servido. Nessa escola o sujeito-que-tem-fome é convidado de honra à mesa, em que o prato lhe é servido à la carte a seu gosto.
Conclusões provisórias com verbos de ações contínuas
Como nessa escola os verbos finalizar e seus sinônimos não são conjugados, mas encaminhados para os verbos “recomeçar”, “ressignificar”, “retomar”, dentre outros, faço uma pausa para encadear uma seqüência de conclusões provisórias, em numeração aleatória, que poderão ser coordenadas a critério de quem as lê:
1°. O sentido da individualidade e da alteridade na Escola Cidadã combina paradoxalmente com a percepção do coletivo e do eu-outro;
2º. Estar-sendo é abrir-se ao movimento contínuo da interação, integração e da composição dos sujeitos-em-educação;
3º. Sobreviver é viver com consciência do constante processo de reintegração, de reorganização da dinâmica de conhecer-para-ser;
4º. Aprender será sempre e cada vez mais intensamente uma possibilidade constante de ampliar as interações de acesso às condições de cidadania a qual todos nós temos por direito inalienável;
5º. A escola não pode formar cidadãos, pois cidadãos já nascem feitos, por direito constitucional. O que a escola pode fazer é ampliar as possibilidades de manutenção da cidadania e criar condições para a percepção e a consciência plena de ser-cidadão.
6º. Uma escola que queira “formar” cidadãos engessa-lhes toda e qualquer possibilidade de sê-los, pois artificial e limitada, cria formas e fôrmas: estereótipos;
7º. Há um verbo que jamais deveria ser conjugado nessa escola: formar. Aquele que se forma, que se deixa formar é produto final e acabado, que se rende diante da impossibilidade de continuar-sendo.
8º. A escola que não forma, não reforma, não deforma e nem tão somente informa permite a eterna e ilimitada possibilidade de conjugação dos verbos no tempo presente, com perspectiva de futuro e com uma consideração com o passado, sem desmerecer-lhe a história.
9º Alunos e professores de uma escola cidadã são co-participantes de uma gramática que não exclui o sujeito, nem supervaloriza o objeto, todavia, conjugam (juntos ) toda a lista dos verbos incoativos e se permitem criar novos verbos e novas palavras como nos inspira Chico Buarque : “Palavra minha matéria, minha criatura”.
10º O educador dessa escola cidadã tem a sensibilidade de Guimarães Rosa e reconhece que mestre é quem de repente aprende e, numa constatação socrática, sabe que ainda não sabe tudo que deveria saber, então, como seus alunos, terá sempre uma pergunta a fazer. A Escola Cidadã será, portanto, a escola de perguntas e não mais a escola de respostas.

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Referências

ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar. Gerenciando razão e emoção. Cotia: Ateliê Editorial, 1999.
BERNARDES, Sueli T. A. et. al. O Fazer e o Pensar no Cotidiano da Sala de Aula. In: Anais da 25ª Reunião da ANPEd. Caxambu, 2002.
BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. Bauru: EDUSC, 1999.
CUNHA, Maria Isabel. O professor universitário na transição de paradigmas. Araraquara: JM Ed., 1998.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Narciso na Fonte - Caravaggio

E se Narciso conhecesse Alice?

Conjeturas a respeito de um tema da educação

Ormezinda Maria Ribeiro- Aya-Dra em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp/Araraquara
Publicado na RBEP N. 215


RESUMO
Neste ensaio tecemos algumas conjeturas a respeito dos rumos da educação, apontando como elas são percebidas. Empregamos a figura mitológica de Narciso e a personagem Alice, do país das Maravilhas e dos Espelhos, para, numa alegoria metafórica questionarmos algumas teorias que têm norteado os caminhos da educação. Nosso propósito é evidenciar o que vários educadores já apregoam sobre esses caminhos e acentuar a premente necessidade do encontro das diversas ciências que convergem para a educação.


ABSTRACT
In this essay we have considered the aims of education, focusing on how they are perceived. We have employed the mythological image of Narcisus and the character Alice from the books “Alice in Wonderland” and “Through the Looking-glass” in order to question, in a metaphorical allegory, some theories that have guided the paths of education. Our aim is to put in evidence what several educators have already emphasized about these paths, and to point out the urgent necessity of joining the different sciences that converge towards education.

Key words: education; educational theories; human sciences.

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INTRODUÇÃO

“Não sabemos. Só podemos conjeturar.”
Karl Popper (1972)


Neste ensaio pretendemos levantar algumas questões, tomando-as não como verdades absolutas, mas como conjeturas que poderão levar à reflexão e ou à refração acerca de algumas teorias que têm norteado os caminhos da educação, e de como elas são percebidas e apreendidas. Não se trata de definir a educação, mas de tentar entender como funciona a educação. Nosso propósito é evidenciar o que vários educadores já apregoam sobre os caminhos da educação e acentuar a premente necessidade do encontro das diversas ciências que convergem para a educação.
Trazemos a figura mitológica de Narciso e a personagem Alice, do país das Maravilhas e dos Espelhos, para, numa alegoria metafórica tecer algumas conjeturas a respeito dos rumos da educação e de como educadores e educadoras podem traçar seus caminhos na e pela educação.

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1. Mirando o espelho

Toda ciência é especulação. A verdade não existe em si. Ela depende de algum ponto de vista, poderíamos aduzir das palavras de Popper. O que fazemos a respeito da verdade são conjeturas. E cada ciência chama para si a competência de pronunciar a última verdade. Isso também é relativo, considerando que toda ciência tem como princípio a busca incessante pelas verdades e, se tiver a resposta como absoluta, perderá a razão de ser. Há sempre perguntas a serem feitas e as respostas são sempre provisórias, portanto, o estatuto de ciência prima por conter uma constante interrogação e uma provisoriedade permanente. Paradoxal, mas estável, essa consideração é que nos faz ainda procurar novas fórmulas, novos caminhos e novas interrogações.
Brandão (2002, p. 41) nos alerta para essa condição das ciências, lembrando que nas ciências humanas, isso ainda é mais forte. Esse antropólogo-educador, dialogando com a história das descobertas, ou conjeturas científicas, aponta inúmeros contextos de certezas e incertezas das ciências, dizendo que andamos sempre às voltas, ora com “psicologismo” demais, ora com “sociologismo” demais. Lembra que há, em alguns casos, “estrutura” em excesso e penúria de “história” e em outros o oposto. Afirma que uma “pedagogia da existência” ameaça superar uma “pedagogia da essência” e, que de vez em quando, para sermos construtivistas, construímos mais divergências do que pontos de encontro.
Como educador-antropólogo, questiona o instável lugar de diálogos entre o lugar do sujeito e a dimensão social da educação, assim como a interminável polêmica entre “humanistas” (mas será este o nome mais adequado?) e “behavioristas” (idem?).
A inquietação demonstrada nas interrogações de Brandão aponta-nos para as constantes dúvidas e inconstantes certezas das idéias sobre a psicologia, sobre a pedagogia e sobre os alcances e limites dos olhares das ciências sociais na educação.
Pergunta esse antropólogo-educador:
Somos essencialmente o que a herança genética cria em nós desde um momento para sempre? Tudo o que é importante neste ainda tão pouco conhecido processo de socialização tem a ver com o que se passa na psiquê de cada uma e cada um de nós, e o seu limite seriam apenas as relações interativas de pequena escala, de que a família nuclear é o melhor exemplo e onde a sala-de-aulas é quase um limite? Ou, ao contrário, cada uma de nós, as nossas famílias e as salas-de-aulas que habitamos como estudantes e/ou como educadores são dimensões interindividuais ou agenciadas em e como uma determinada cultura que nos cria, recria e molda com poderes muito maiores do que podemos suspeitar pedagogicamente? (BRANDÃO, 2002, p. 44)
Todos nós, envolvidos com a educação, somos testemunhas da contribuição dos diversos campos da teoria e da prática da educação, mas também somos vítimas dos desequilíbrios e dos modismos que nos arrebatam para as águas de um lago que não sabemos profundo ou não.
E quais têm sido os nossos espelhos? Não raras vezes vemos nossos reflexos em águas não muito límpidas e seguimos refratando essa imagem projetada por uma construção de uma teoria que nos parece clara. Assim, produzimos nossa compreensão acerca do que lemos, ou ouvimos, reproduzindo imagens, sem considerarmos os múltiplos e ilusórios efeitos dessa projeção. O espelho nos é favorável. Miramos e vemos refletir uma bela figura. Somos narcisos na educação e nos afundamos nessas águas, sem questionar nosso reflexo. Somos aquela imagem. Não é projeção. Acreditamos cega e surdamente que ali está a verdade. A única e inexorável verdade. A verdade da educação. Como pensamos que não podem existir duas verdades, nesse reflexo de nossas próprias idiossincrasias seguimos em nossa narcísica percepção. Mas seria aquele o único espelho?

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Refletir ou Refratar?

Voltamos em Popper (1972): se não sabemos só podemos conjeturar. E, retomamos Brandão (2002, p. 42), que acredita existir desequilíbrios muito grandes e muito curiosos mesmo dentro do campo da contribuição das ciências sociais e das ciências humanas. Onde começa uma? Onde acaba a outra? Para esse educador
existe aí algo semelhante à desproporção entre um excesso de psicologias diferenciais da superfície do humano (psicologia da aprendizagem, psicologia da inteligência, psicologia da motivação, psicologia da personalidade, psicopedagogia, etc) e uma ausência quase absoluta das psicologias de profundidade (psicanálise, psicologia analítica, etc).
O que nos leva a esse questionamento é a consciência da necessidade de que os educadores mergulhem cada vez mais no desafio de buscar pensamentos, pesquisas e teorias mais e mais interdisciplinares. O que não se sabe ainda é porque motivos as descobertas e teorias, a contribuição direta e indireta de Freud, de Jung, de Adler, de Melanie Klein, de Eric Fromm, dentre outros lembrados por Brandão, permanecem tão distanciadas da formação de educadores. Não há razão para que essas teorias permaneçam até hoje nas áreas de penumbra da formação e do trabalho de um profissional da educação, afinal, o inconsciente aprende e seus desdobramentos são um fator importante na vida e no destino do sujeito aprendente, reflete Brandão (2002, p. 43):
Ora, pensemos que vista desde uma boa teoria analítica, a pessoa humana é também e é essencialmente um inconsciente que, não apenas nos ternos anos da infância, mas ao longo de toda a vida projeta símbolos, sentidos de vida, desejos e sensibilidades para além de si mesmo, e constrói assim a sua a face de identidade e realização consciente onde, supõe-se, está tudo o que envolve quase toda a capacidade lógica e afetiva de aprender e, portanto, uma boa parte do trabalho da educadora.
Se também ponderarmos sobre isso, veremos que muito do que se tem feito em termos de desdobramentos das teorias sobre a educação tem sido limitado à pura reflexão de seus pensadores e à adoção dessa ou daquela teoria, como sendo adequada ou não, satisfatória ou deficiente, no sentido de dar conta de um campo do conhecimento, que muitas vezes se restringe a uma mera transmissão de dados repensados à luz de uma dada teoria.
Refletimos? Sim, muitas e muitas vezes. Como uma imagem no espelho, tal qual nossos olhos enxergam, e tal como o modelo se apresenta, com as mesmas cores e as mesmas formas. Na educação espelhamos a imagem, desse ou daquele pensador, dessa ou daquela teoria, que aos nossos olhos ficaria bem em um dado momento de nossas práticas, num dado campo de nossa atenção.
Já disse Sartre que o homem é livre para escolher, mas dentro de determinadas circunstâncias e que deve decidir-se a fazer algo em cada instante da vida, mas decidir-se é limitar-se. Para esse filósofo, conforme registra Larroyo, (1974-1979, p. 816-7):
A liberdade é pressuposto ontológico de seu crescimento integral, o qual há de ver-se à luz de seu destino pessoal. O educando é o criador de sua essência, tem de incumbir-se de si mesmo. O educador por seu turno, é apenas um suscitador do eu: quem desperta o aluno para a consciência da responsabilidade, da finitude, da morte, mediante uma sustentada preocupação consigo mesmo. O educador não modela a criança e o jovem, pois não pode decidir sua essência; mas terá de incitá-lo em benefício de sua autenticidade e originalidade pessoais.
Refletir tão somente sobre esse ou aquele ato educativo não nos basta. O espelho reflete aquilo que se apresenta a sua frente. E o professor não pode, a respeito de sua prática docente, simplesmente refletir, mas deve, sobretudo, refratar. No sentido de não somente contemplar “seu fazer”, mas de colocar-se como aquele que se refaz na sua ação de fazer.
Refratar é ir além da imagem projetada, é possibilitar uma nova forma de enxergar uma mesma imagem a partir do reflexo, é somar a partir das divisões, é multiplicar nas subtrações. Refratar é, pois, reconhecer uma reintegração entre as ciências e, até mesmo, entre elas e outras esferas humanas de razão e de sensibilidade como uma saída em direção à descoberta do novo, em todos os campos de criação do saber. O que diria Brandão, “em tempos de inteligências múltiplas, já é bem a hora de multiplicarmos os nossos olhares sobre a inteligência e sobre a própria aprendizagem”.
Para Baudrillard (1979, p. 64), o espelho é a absorção, não a reflexão. No espelho que escraviza os que não se livram dele, escreveu Schuler (1994, p. 51), apreendem-se contornos exteriores. Aqueles que se desprendem do encanto dos reflexos inventam o que nunca se viu, em vez de concentrarem-se numa única forma vista, “matriculam-se na escola do possível, aprendem a manusear arquivos do passado, a delinear projetos futuros”.
À maneira de Alice estão aptos a atravessar o espelho e se aventuram ao estranho, à nova imagem refratada, não refletida, enquanto Narcisos não enxergam além de si mesmos e de suas limitações.

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Qual Narciso, qual Alice

Eis o grande desafio de Narciso: atravessar o espelho e alcançar o universo que rompe com o real criado pelas percepções culturais, conformadas no limite da cultura, dos valores e ideologia a que se está imerso.
Como Narciso, enfrentamos um dilema: na educação somos espelhos e espelhamos. Narciso encanta-se com o homem idealizado que, tendo capturado a imagem ideal não quis perdê-la e, por se fixar na imagem, recusa o apelo de outras visões, tal qual o homem escravo da caverna. O que vê, como no mito platônico, basta-lhe, captura-lhe a vista e o entendimento, destaca Schuler, (1994, p. 32).
Qual Narciso, olhamos fixamente para uma realidade refletida pelas nossas próprias ideologias. Construímos nossos signos e construímos com eles nossas “realidades”, nossos espaços, e neles habitamos. Se construímos nossa realidade e nossos signos num processo cíclico de reprodução da práxis, somos essencialmente o que as lentes do mundo refletem e refratam em nós. Enxergamos o mundo, ou a “realidade” conformada no mundo, com as lentes desse mundo.
Se entendermos que a linguagem não é só reflexo, reprodução ou reiteração da práxis, mas que ela pode também desenvolver uma ação dialética e criativa, de forma a desagregar os estereótipos de nossa percepção, podemos confrontar Narciso e Alice.
A linguagem que usamos para ler o mundo determina, em grande medida, a forma como pensamos e agimos no e sobre o mundo, uma vez que não existe uma realidade fora da linguagem e dos signos. A linguagem e os signos são constitutivos da realidade, que é produzida na e pela linguagem. Assim, não existe lugar para uma perspectiva que pretenda enxergar além da aparência do discurso. A aparência é a própria realidade, manifesta em discurso. Entendendo que, na linguagem, produzem-se compreensões particulares do mundo, isto é, significados particulares. Tal significado é sempre construído, produzido, de forma contextual, no interior de práticas determinadas. Se as práticas sociais são pontos de criação de signos específicos, então a atividade semiótica é produtiva, não uma distorção ou reflexo de uma realidade material que está situada em outro lugar. E virá dela o nosso ponto de apoio, ao conjugarmos, (e não haveria outra forma) linguagem e cultura.
Eis o grande dilema de Alice: contemplar o espelho e alcançar a própria face, conhecer o universo interior, desmascarando princípios, valores e crenças de forma a desestabilizar as certezas, criadas a partir de uma experiência reproduzida diante de um espelho que reflete as algemas das idiossincrasias.
O poder está no exercício da palavra, diz Arendt (1981, p.45), e todo o campo do saber humano, seja ciência ou ficção, é perpassado por uma linguagem. E é a linguagem que constrói a realidade, embora julguemos realidade geradora da linguagem. Numa perspectiva fenomenológica não é impróprio repetir Merleau-Ponty (1945, p. 65) “O olho que vê o mundo é o mundo que o olho vê”. É inconcebível, portanto, um mundo desprovido de linguagem. Há mundo, porque há linguagem.
A linguagem de Alice é a do questionamento, o da não aceitação do pronto, do já estabelecido. É, sem pretensão de ser, uma atitude filosófica. Alice indaga, questiona. Não aceita o imposto, o suposto, ou o pressuposto. Alice atravessa o espelho e se depara com as suas fantasias, com as metáforas explícitas, com a realidade por detrás do espelho. Alice não sabe aonde ir, mas não quer continuar onde está. E procura um caminho. Sabe que a direção a seguir implica escolhas e admite que não tem preferência quanto ao lugar para onde vai. Mas tem certeza de que não quer ficar onde está. É essa certeza que lhe garante a saída.
Qual Alice, numa atitude investigativa, deveríamos atravessar esse espelho, permitir que nossa narcísica vontade ultrapasse nosso reflexo e seja questionada, com a mesma singularidade.
Numa perspectiva culturalista, que combina sociedade, cultura e linguagem e que não acredita na existência de um sujeito soberano e de uma verdade a ser alcançada, e entende que se deve enfatizar a provisoriedade das múltiplas posições em que somos colocados em função das múltiplas mudanças discursivas que nos constitui, inferimos que a linguagem que nos cerca constrói o nosso universo. Somos o resultado dos discursos que nos compõem.
Tivesse Narciso ouvido outras vozes, sua imagem teria se somado às outras tantas. Tivesse Narciso conhecido Alice uma pergunta ao menos lhe teria sido feita: como posso sair daqui?

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Por detrás do espelho

Conhecer primeiro a si, para depois conhecer o outro, no terreno da educação, na relação professor-aluno, é mais do que refletir a máxima socrática, é procurar a transformação das próprias concepções a partir de um olhar interior que se refrata no exterior, na práxis pedagógica, no sentido dado por Cunha (1998, p. 82) como “a prática refletida”, concebida em unidade com a teoria, “a ação que subsidia o pensamento para a construção de novas idéias e diferentes intervenções da realidade”. É sair da posição narcísica e encarar o outro lado do espelho. É, ainda, pensar a prática como uma ação coletiva, técnica, econômica, social como fundamento e juiz do pensamento teórico, da ideologia, como salienta Lalande (1996, p. 1287). É buscar um diálogo com outras ciências, não um monólogo.
Ante o espelho, Narciso, deslumbrado com o que viu, falou consigo e encantou-se, ao perceber a resposta nos lábios da figura admirada. Alice, ao sair de seu mundo, dialoga com um gato. Busca um interlocutor. Sai de si mesma e avança. Ainda que lhe digam que se não sabe aonde vai é indiferente o caminho que venha seguir, Alice não recua. Ao contrário, encanta-se com o que vê pela frente. Faz descobertas. Confere. Compara. Desestabiliza velhas certezas. Alcança novas dúvidas. E não fica onde está. Mesmo quando volta, volta diferente. Diante do espelho não é mais a mesma. Alice, maravilhada, lança-se ao novo destino. Com olhos de ver o mundo. Com atitude filosófica, livre do senso-comum.
É essa a figura que buscamos na educação. Sair do discurso do senso comum e buscarmos na diversidade de pontos de vista o caminho para nossas aprendizagens.
Uma terra-de-todos-e-de-ninguém é o outro lado do espelho, que divide e une cientistas da vida, psicólogos, pesquisadores sociais e educadores. Assim, o mistério do aprender estende-se como nunca a uma possibilidade polissêmica de descobertas e de integrações de idéias empíricas e teóricas. Uma multiplicidade de olhares e de compreensões que pouco a pouco descobre que não há mais caminhos únicos e nem olhares exclusivos. Do outro lado, reconhece-se que não há mais explicações claramente sistemáticas e definitivas para uma verdade única e absoluta. Desfaz-se o mito.“A palavra, fundadora, ergue caminhos sobre distâncias. Precários caminhos! Fazem-se e se desfazem; construídos; desconstroem”.(SCHULER, 1994, p. 8).
Há que se propiciar as aproximações científicas de e entre conhecimentos diversos, em que possa aproximar o senso comum da ciência, em que se busque bem mais a formulação de novas perguntas do que a acumulação de respostas duradouras. Deixar de contemplar as ciências positivas em busca de leis e voltar para as ciências interpretativas à procura de significados. E isso, certamente nos encaminhará para uma convergência fascinante de campos do saber, que nos obrigará a um esforço cada vez mais redobrado de estudos e de pesquisas, já destacava Brandão (2002, p. 43).
Se a imagem fria e congelada de um Narciso perplexo pelo que vê, refletida bem diante de seus olhos, e, posta ao alcance de suas mãos, o paralisa, também nós nos quedamos paralisados diante de imagens que se nos apresentam como uma efígie forte e segura. E, “como negar a verdade da imagem, se tamanha é a força dela?”, questiona Schuler (1994, p. 33).
Enfim, como atravessar esse espelho, cujo limite é a nossa própria imagem, que nos paralisa e nos condena à imobilidade contemplativa em nossas idiossincrasias. Como mudar esse reflexo se o que vemos nos basta e se a sombra que projetamos nos captura, sem uma refração? Tal qual Narciso, diante do espelho, queremos imóvel o que todos os dias se constrói.
Lemos em Larroyo (1974-1979) as idéias de Jonas Cohn sobre educação. Nelas depreendemos que, para esse educador, o homem se educa à medida que se apropria dos bens culturais, mas a educação não é mera transmissão de bens culturais. É erro do indivíduo crer que é um ser isolado. Em cada pulsação de nossa vida bate, assim, psíquica, como fisicamente, a vida em comunidade. Então, a verdadeira e mais fecunda formação é adquirida quando o sujeito assimila os bens culturais mediante um esforço ativo, no qual toma clara consciência dos objetivos e resultados de sua ação, quando realiza um esforço por si mesmo, destinado à produção seja espiritual ou manual.
Também em Larroyo (1974-1979, p. 816-7) vimos que Sartre, em sua Pedagogia Existencialista, corrobora essa linha de pensamento ao dizer que a existência ou vida humana é, em primeiro lugar, atividade, ação. Existir é, portanto, escolher entre diferentes propósitos ou objetivos; é ir-se fazendo o homem a si mesmo. A existência não é um estado, mas um permanente vir-a-ser.
Se o homem é livre para escolher dentro de determinadas circunstâncias e decidir-se é limitar-se, como praticantes do conhecimento a respeito da pessoa, da cultura e da sociedade, Brandão (2002, p. 46) nos garante que:
o caminho a percorrer para buscar compreensões passa pela integração e o equilíbrio sempre necessário, sempre instável, entre campos e domínios diversos de conhecimentos científicos. Passa pela interação entre convergências de ciências e outras esferas de saber, sentir e pensar: a filosofia, a espiritualidade, a arte ... a imaginação humana em todos os seus campos, em todas as suas dimensões e em todas as suas possibilidade de criação. E passa pela abertura corajosa à indeterminação, à procura incessante de algo sempre nunca inteiramente explicável, porque nunca mecânico e, assim, nunca inteiramente redutível a fórmulas, a números ou a leis.
Algumas conjeturas e outras incertezas no cotidiano escolar
A educação deixou em algum espelho o reflexo do que tem a ver com as estruturas e relações de reprodução do saber por meio da socialização escolar de crianças e de jovens. A interface com a Antropologia, em algum momento, deixou de ser contemplada. Ecoando Cecília Meireles poder-se-ia repetir: “Em que espelho ficou perdida a minha face”. Nesse campo “Narciso e Eco definem os limites do homem: a palavra não atravessa a rocha, os reflexos congelam na imagem.”(SCHULER,1994, p. 44).
Por algum tempo, considera Brandão (2002, p. 64), “a antropologia deixou em segundo plano até mesmo todo um repertório essencial de questões relativas ao sujeito humano, ao lugar da individualidade na cultura e aos relacionamentos interativos entre pessoas e, não apenas, entre atores sociais”. E isso também fez a Educação.
Em que espelho ficaram perdidos os imaginários, as vivências pessoais profundas, os devaneios, as visões de mundo daqueles que vivem e compartilham com outros narcisos o mundo da educação?
A escola deveria devolver ao todo da pessoa a dimensão parcial da função profissional e permitir que as identidades pessoais e profissionais de seus atores culturais, na escola e ao redor da escola, considerados desde o ponto de vista da integridade de suas existências, dentro e fora do exercício de uma função pedagógica do eixo ensinar-e-aprender, sejam profundamente percebidas. Não só refletidas, mas refratadas.
Por que- perguntaria Alice- a escola se preocupa ainda hoje em ensinar para a prova, ou, num pretenso discurso mais avançado, ensinar para a vida?
Com Brandão(2002, p. 50) questionamos:
Ora, mas não é este reproduzir o outro como eu mesmo, o que tem sido hoje em dia bastante revisto e criticado por tantas e tantos educadores? Pois em termos caros ao interacionalismo simbólico, educamos para tornar interior a pessoas uma cultura que as antecede, uma cultura que as conforma e que, em contrapartida existe nas e através da interações entre as pessoas.
E, como Alice, maravilhada e perplexa diante do que nos parece novo, nos perguntamos: como ensinar o outro como outro?
Se o que existe de mais importante entre nós acontece diariamente e não se pode imobilizar, não podemos continuar querendo imóvel o que todos os dias se constrói. Não podemos congelar essa imagem em nossas bibliotecas, em nossos cadernos amarelados, atendendo ao programa enquadrado em grades curriculares.
Não sabemos: só podemos conjeturar, ecoa a fala de Popper. Mas acreditamos que a resposta para essa interrogação está em nossas aulas. Brandão chamou-a de pequeno milagre, Barthes (1997) tomou-a como tema de sua aula magna no College de France, e nós acreditamos que é nela que está o sentido da escola. Não o sentido organizado em módulo que vão de 45, 50 a 75 minutos, mas o sentido revisistado pela Nova Retórica: o do paradoxo e do maravilhamento.
Para tal, os estudiosos do Grupo de Liége, precursores da Nova Retórica, empregam a estratégia dos antigos gregos, professores de retórica que, para arejarem a cabeça dos atenienses contra o discurso do senso-comum, recorriam à técnica de criar paradoxos- opiniões contrárias ao senso-comum- levando seus interlocutores a experimentarem o que ficou conhecido como maravilhamento, ou a capacidade de voltar a se surpreender com aquilo que o hábito foi tornando comum. (ABREU, 1999, p. 32)
Baseada, portanto, na diversidade de pontos de vista, na multiplicidade de pensamentos e não em verdades absolutas, a retórica clássica foi combatida, num período coincidente com o desmantelamento da democracia grega. Hoje, a exploração da verossimilhança e dos diferentes pontos de vista sobre um objeto ou situação tem sido, diz Abreu (1999, p. 33), o motor que impulsiona o grande avanço da ciência e da tecnologia.
Lembramos também um filósofo francês, Gilles Deleuze, que publicou, em 1969, “A Lógica do Sentido”, no qual procura questionar a teoria do sentido estabelecida desde Platão, a partir dos jogos de linguagem de Lewis Carroll, das superfícies das cartas de baralhos que não possuem espessura e são figuras espelhadas e invertidas. Segundo Deleuze, as obras de Lewis Carroll sobre Alice constituem a primeira abordagem aos paradoxos do sentido. A reflexão do espelho conflui com a inversão dos jogos de linguagem carrollianos e todas essas construções criam um clima de incertezas, onde o absoluto não existe.
Qual uma Alice encantada com o que lhe parece novo, perguntamos: por que essa estratégia não pode também ser empregada na educação?
Se avançamos tanto em outros campos científicos, por que reproduzimos velhos modelos em educação? Aqueles mesmos que criticamos e que dizemos retrógrados e ultrapassados? Por que nem ao menos conseguimos nos livrar da grade, das gavetas e dos conteúdos programáticos?
Repetimos, como Eco, as nossas narcísicas expressões, “estamos ensinando para a vida”. Mas pouco avançamos, pois vida é aquilo que acontece enquanto planejamos nossas aulas seguindo um ritmo cronológico de acontecimentos passados. Ignoramos o presente, quando projetamos um futuro ideal.
Brandão (2002, p. 65) conclama educadoras e educadores a promoverem a “passagem do cotidiano da escola para a educação do cotidiano”. O que, segundo esse educador-antropólogo, significaria, em primeiro lugar, “o abrir as portas da escola e sair a buscar compreender os mundos circunvizinhos, antagônicos, próximos e remotos onde estão, onde vivem e convivem com suas culturas do cotidiano os próprios personagens da vida escolar”.
A educação deveria sair de seu terreno cercado e abrir suas portas, sem receio de se re-centrar, de perder seu lugar próprio. É a essa coragem a que nos impulsiona Alice, que, ao sair de seu cômodo lugar, encolheu-se, mas permitiu-se o diálogo com outros “seres”, arriscou novos caminhos, mesmo sem saber aonde dariam. E, quando retornou, voltou ao seu tamanho, contudo, diferente. Singularmente diferente. Outra, porém, mais madura.
É ao mesmo, no mesmo instante, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos.
Alice não cresce sem ficar menor, e nem fica maior sem ficar menor. Em todas as coisas há um sentido determinável, como afirma Deleuze (1974, p. 74): “O paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”.
O mesmo efeito também se dá no campo verbal, do nome que se confunde com o ato. O acontecimento tem nesse o seu contrário intrínseco. A imagem de Alice guarda seu contrário, que é refletido no espelho. Por várias vezes na história Alice perde o seu nome, seu maior atributo identificador, para dar lugar à série de devires. Alice não é, mas está sendo.
No seu país das maravilhas, não é só seu nome que transmuta. Tudo é metarmorfoseado e metamorfoseável. Até o tempo, senhor de tão intrínseco, perde seu atributo temporal. O chá dos chapelões não devia ser às cinco. Não há tempo para tantas modificações.
Imagine ainda querer chegar em um lugar não importando onde seja esse. Para caber num mundo como esse é preciso encolher-se como Alice. Lembremos Bachelard, (1984, p. 197.), para quem se encolher pertence à fenomenologia do verbo habitar e para quem acredita que só mora com intensidade quem sabe encolher-se.
Vem-nos aqui outra conjetura: e se, nos lagos da educação, em vez de nos quedarmos diante de nossas projeções, frutos de velhos modelos, fizermos uma nova rede de significados? Busquemos novos símbolos então!
Se toda a realidade humana é simbólica, ela não é. Apenas representa, sendo representada. Nossas projeções da realidade são, pois, coisas e atos que dependem de simbolização. A capacidade de simbolizar e de produzir símbolos é que faz a diferença entre o animal e o humano, e é o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura que, ao ser reproduzida no seio da vida social, reflete e refrata uma realidade construída pelo homem.
Busquemos nas relações entre pessoas e os seus símbolos e significados, entre uma pessoa e uma idéia, entre as várias possibilidades de realizações culturais dos povos um grande eixo para a educação.
Indaguemos com Brandão (2002, p. 68): “o que deve mudar na educação, quando a educação é repensada através de todas as suas interconexões socioculturais e não apenas através de suas “funções sociais”?
E à guisa de conclusão, para uma verdade que nos apresenta provisória, busquemos em Michel Foucault (2000) uma resposta também provisória, acreditando com esse filósofo que se deve evitar a alternativa do fora e do dentro, pois é preciso situar-se nas fronteiras.
E, na trilha desse pensador, para quem “o amor à verdade é terrível e poderoso” e que ousou, como Alice, transgredir suas fronteiras, há que se pensar em uma proposta de educação que possibilite um tipo de relação do indivíduo consigo mesmo, que rechace e denuncie a pressuposta universalidade de todo o fundamento, que se constitua sem recorrer a uma verdade única e arraigada nas velhas experiências.
E assim, colocar o sujeito no centro da reflexão, mas um sujeito liberado dos atributos que lhe foram dados pelo saber moderno, pelo poder disciplinar e normalizador e de uma determinada forma de moral orientada para o código, um sujeito da educação, que possa refratar e se multiplicar em incontáveis campos de visão.
Há que fugir do apego à verdade absoluta, da imagem perfeita e, nessas conjeturas, supor que Narciso será salvo pela mão de Alice.


REFERÊNCIAS

ABREU. Antônio Suárez. A arte de argumentar. Gerenciando razão e emoção. Cotia: Ateliê Editorial, 1999.
ARENDT. Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. [1958]
BACHELARD, G. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
BARTHES, Roland. Aula. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1979.
BRANDÃO, C. R. A educação como cultura. São Paulo: Mercado de Letras, 2002.
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CUNHA, Maria Isabel. O professor universitário na transição de paradigmas. Araraquara: JM Ed., 1998.
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Perspectiva, São Paulo, 1974.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Coleção Ditos e Escritos, vol. II. 2000.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
LARROYO, F. História Geral da Pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, 1974-79.
MERLEAU-PONTY, M. Phénomenologie de la perception. Paris: Galimard, 1945.
POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972.
SCHULER. Donaldo. Narciso errante. Petrópolis: Vozes, 1994.